Na ecologia de mídias contemporâneas, os usuários estão cercados por telas e dispositivos que o conectam em rede de forma ubíqua, um processo que nos impõem não mais “uma vida com a mídia, mas uma vida na própria mídia” – como observa Mark Deuze, Laura Speers e Peter Blank no artigo “Vida midiática”. Para os criadores de conteúdos e projetos, também imersos nessa realidade, o exercício de procurar, destrinchar e testar uma ideia e o mundo narrativo possível em que ela existirá é o princípio da criação de um projeto multiplataforma. Em uma época em que “saber tudo se tornou ver tudo num mundo em que a realidade é igual o imaginário”, como observa Jaqueline Barus-Michel em “Uma Sociedade nas Telas”, é um grande desafio trabalhar com a noção imaginário e pensar em sua aplicação para um projeto com múltiplos pontos de entrada e a participação dos usuários.
A disciplina “Desenvolvimento de Projetos Audiovisuais Multiplataforma” têm o objetivo de proporcionar aos alunos a percepção da produção de conteúdo multiplataforma enquanto projeto, tanto nos princípios da criação como no sentido de sua formatação e da gestão em sua execução. Além disso, a disciplina procura criar mecanismos de identificação das histórias a serem contadas no encontro entre os gêneros de jornalismo, documentário e ficção de maneira que possam desenvolvidas as relações entre potência e ato; real da linguagem e real da história e identificar as possibilidades de comunicação diante das novas formas de circulação dos conteúdos.
Os projetos audiovisuais multiplataforma se constroem pensando na interatividade, nas demandas sociais, nos valores institucionais aos quais o projeto está vinculado e o espaço possível de inovação é sempre contextual. “Há um processo de construção conjunta. O ambiente com as suas estratificações sociais – da direção à faxineira – é um microcosmo da sociedade, então uma das boas estratégias da gestão de um projeto é ele tornar–se participativo também no intragrupo”, explica o professor Pedro Varoni (UFSCar e EAM UFSCar).
A disciplina “Desenvolvimento de Projetos Audiovisuais Multiplataforma” integra o curso de especialização que é realizado presencialmente na Universidade Federal de São Carlos, aos sábados e quinzenalmente. As inscrições estão abertas e com desconto de 30% até 10 de fevereiro. Saiba mais e inscreva-se: http://geminisufscar.com.br/especializacao/inscricao/
Confira a entrevista com o professor Pedro Varoni:
Qual o princípio da criação de um projeto multiplataforma?
Tudo começa com a ideia. Na nossa disciplina, procuramos exercitar e refletir sobre essa etapa inicial de um projeto multiplataforma. Como de um tema, uma ideia, chega-se a um conceito? E procurando ver um pouco antes: de onde vem as ideias e como elas adquirem uma dimensão coletiva? Há um processo que passa pela subjetividade – que não é sinônimo de uma identidade pessoal – mas a forma como o mundo influencia o sujeito e o sujeito o mundo. O desenvolvimento de uma ideia em um conceito passa pela construção da singularidade específica de cada projeto e a forma como essa diferença é capaz de agenciar as audiências, tornando-as participativas. Assim, procuramos exercitar um processo criativo coletivo.
O impacto da inovação em produtos simbólicos criativos se dá em contextos específicos: o universo representado, por exemplo, por uma emissora de TV ou outra mídia em que o projeto esteja ancorado, ou ainda a busca de um imaginário social a ser contemplado por iniciativas empreendedoras. Entendemos o conceito de cultura participativa para além de uma estratégia midiática, pois ela diz respeito a uma certa horizontalidade do processo criativo que permeia hoje toda a vida social: da educação formal às relações corporativas.
Nosso trabalho é estimular que os alunos tragam suas vivências e inquietações para que, a partir delas, se construa um projeto conjunto, verdadeiramente dialógico. Vivemos numa sociedade conectada e nossa formulação cria um novo ponto nessa rede que pode se cruzar a outras redes. Pensar de uma perspectiva mutilplataforma é ter a clareza de saber que ponto é esse que criamos e quais as redes potenciais a que ele vai se conectar e depois seguir o fluxo.
Como os projetos multiplataformas podem dialogar com as subjetividades e os imaginários regionais?
Em primeiro lugar é preciso que eles nasçam dessas subjetividades e imaginários. Isso depende de uma certa percepção do que seja o imaginário e também a subjetividade, saber ver além do visível, perceber o não dito no que é dito, estar com os sentidos atentos para o processo semiótico da realidade: o jeito como as pessoas se vestem, como se divertem, quais são seus hábitos e inquietações. A subjetividade, tal como a pensamos numa perspectiva dos desdobramentos do trabalho de Michel Foucault, diz respeito a um jeito de ser e viver, a forma como as pessoas se constituem em sujeitos, as diferentes vontades de verdade de cada tempo histórico e de cada cultura territorial permeada pelos fluxos simbólicos midiatizados. E hoje como a sociedade estimula as liberdades de gênero e de estilo, há uma enorme diversidade.
A minha experiência trabalhando alguns anos no nordeste, por exemplo, demonstrou que a ligação com o universo das festas de São João é algo profundo, ao mesmo tempo sagrado e profano, tradicional e contemporâneo. O que esse imaginário revela? Será que a forma de contemplar esse imaginário nos produtos midiáticos de jornalismo entretenimento e ficção abarcam as sutilezas desses imaginários? Um dos exemplos que trazemos em sala de aula é esse, como a partir de uma tradição popular você formula um projeto multiplataforma participativo.
Vivemos uma sociedade midiatizada mas com uma demanda reprimida de decifrar esses imaginários regionais: o índio, o caipira, os quilombolas, os imigrantes, os negros, como devires. Por mais que hoje exista a realidade da inteligência artificial nas interações em rede, há um aspecto antropológico-vivencial, uma percepção que faz a diferença. Isso nos interessa: o que propor as redes e como incorporar o aspecto responsivo no desenvolvimento dos projetos.
Você possui uma grande experiência conduzindo projetos para a televisão. Quais são os grandes desafios da gestão do projeto ao lidar com uma resposta direta do público?
A TV aberta é, em certo aspecto, conservadora. Como existe um grande potencial de divulgação e visibilidade dos conteúdos, a partir ainda de certa audiência inercial, o alcance dos projetos tende a ser potencialmente amplificado. Esse modelo está em transição, justamente pelo impacto das novas tecnologias interativas e do vídeo on demand que passam o controle da programação e do tempo para as mãos do consumidor. Esse incômodo tem sido positivo para a televisão, no sentido de fomentar um pouco mais a ideia de inovação.
Essa perspectiva gerou, na minha experiência, uma metodologia de trabalho em equipe que procuro levar para os ambientes mais abertos multiplataforma. O primeiro grande desafio é a capacidade de agenciamento interno de uma proposta inovadora dentro da estrutura: é preciso conquistar o pessoal da tecnologia, os editores, cinegrafistas, repórteres, os executivos da área comercial. E a forma como isso se dá é buscando uma gestão verdadeiramente horizontalizada. Nos projetos multiplaforma cada um tem sua especialidade e habilidade: uns são roteiristas, criadores, outros vendedores, tem aqueles que cuidam do aspecto tecnológico. O que na televisão existe de forma departamentalizada, nesse ambiente aberto e colaborativo se dá nas diferentes parcerias e o sucesso depende da qualidade do diálogo.
O audiovisual televisivo é essencialmente trabalho de equipe. Antes, havia a cultura do gênio inventor, autoritário que dava as cartas e minha geração vivenciou uma mudança no sentido da horizontalidade que tem a ver com essa percepção mais ampliada do que chamamos cultura participativa: se o cinegrafista ou o motorista não estão incluídos na ideia, a chance dela não prosperar é grande. A metodologia criada passa pela construção conjunta dos conceitos a partir, evidentemente, de uma diretriz , da capacidade de agenciamento e participação e na escolha das pessoas certas para as funções, considerando seus desejos e aptidões. Nos encontros presenciais do curso buscamos exercitar esse conjunto de procedimentos para que os projetos aconteçam como verdades das pessoas envolvidas e procuramos trabalhar a partir das habilidades e interesses do grupo de alunos.
Como se dão os processos de execução de um projeto multiplataforma em uma empresa televisiva? Quais as articulações e interferências de setores da empresa, na distribuição do conteúdo nas redes, parceria com locais e empresas (que podem viabilizar uma série investigativa ou uma grande reportagem) e na produção executiva do produto?
Num bom projeto de TV precisa haver ao mesmo tempo uma sinergia e um respeito às particularidades de cada área envolvida. Um conteúdo jornalístico, por exemplo, precisa ser blindado. A credibilidade está associada a certa “liberdade” de exploração dos assuntos sem amarras comerciais, institucionais ou políticas. O público, felizmente, está cada vez mais crítico sobre os interesses que definem as opções editoriais dos veículos. Então, é preciso que o exercício do jornalismo se dê de maneira desvinculada dos interesses comerciais imediatos: na escolha das fontes, das problematizações feitas, dentre outros aspectos.
Por outro lado o conceito de um projeto nascente no jornalismo precisa ser compartilhado e discutido com o departamento de marketing que vai criar o plano comercial dele, bem como definir o seu alcance institucional. Essa discussão se dá via gestão. E ai é natural que sejam feitos ajustes conceituais de forma a equilibrar alguns elementos, o que é totalmente diferente de interferências editoriais diretas. É saudável- e necessário- um distanciamento entre as duas áreas na prática diária. Como um sujeito criado nas práticas deontológicas do jornalismo cabe a mim defender esse distanciamento, já como gestor de projetos cabe defender uma aproximação que é muito segura quando os profissionais envolvidos conhecem seus limites éticos.
Outro diálogo fundamental no desenvolvimento dos projetos é com a área de tecnologia. Cada vez mais o conteúdo, a linguagem dependem dos recursos tecnológicos disponíveis. E, nesse sentido, uma abertura dialógica com a área pode ampliar as possibilidades narrativas a partir das tecnologias existentes e, que muitas vezes, não tínhamos o conhecimento delas. Evoluímos muito em algumas situações profissionais com a criação de um grupo de trabalho entre a redação e o pessoal da tecnologia. Eles passaram a entender a lógica um pouco caótica do jornalismo – e assim contribuir mais ou pelo menos reduzir os ruídos- e nós passamos a reconhecer na tecnologia mais do que uma prestação de serviço.
Nas estruturas empreendedoras digitais em multiplataforma deve haver também uma reprodução desse modelo no sentido da expertise dos integrantes do grupo. Uma boa âncora tecnológica é fundamental, assim como na área de marketing e de produção de conteúdo. O sucesso do projeto dependerá muito da capacidade de diálogo entre essas áreas.
Pedro Varoni é mestre e doutor em Linguística pela UFSCar e desenvolveu carreira de 26 anos em afiliadas da Rede Globo, onde desempenhou as funções de repórter, editor, chefe de redação, gerente e diretor de jornalismo e foi diretor geral da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) em 2016. Exerce atualmente a função de diretor editorial do Observatório da Imprensa, cumprindo um mandato de dois anos. Produz e edita conteúdo para o portal do Observatório.