Tenho certeza que você já leu ou ouviu por aí “essa atriz é tão boa que poderia interpretar a lista telefônica”.
O sueco Levan Akin é um diretor/roteirista tão bom que ele com certeza poderia tornar a lista telefônica em um filme lindo.
Akin, pra quem não está ligando o nome à pessoa, é o diretor de E Então Nós Dançamos, um dos grandes filmes de 2019.
Se é que ele não pudesse melhorar, Caminhos Cruzados prova de uma vez por todas que Akin pode (e deve) dirigir qualquer coisa, sempre com um olhar suave, quase sutil, amoroso e punk ao mesmo tempo, em todas as suas histórias.
Este Caminhos Cruzados tem uma história que já vimos, ouvimos algumas centenas de vezes, sobre uma tia (geralmente é uma mãe) que sai de sua casa no meio do nada e vai procurar sua sobrinha (geralmente é filha) em outro país, sem saber falar a língua, sem ter nenhuma informação de onde ela possa estar, mas vai.
Tia Lia mora na Geórgia, o país, e sua sobrinha Tekla, uma mulher trans, mora na Turquia, para onde foi fugindo de todo o preconceito de onde nasceu.
Lia consegue a ajuda de Achi, um vizinho que afirma ter o endereço de Tekla na Turquia, que pode ir com Lia porque ele pretende lá procurar sua mãe, que abandonou a família anos atrás.
E lá se vão uma mulher idosa, em luto pela perda da irmã a procura da sobrinha que não sabe do ocorrido e um jovem bem jovem, que tem um jogo de cintura e uma esperteza de quem mesmo morando no meio do nada, sabe como é o mundo onde ele vive e principalmente onde pretende viver.
Lia e Achi vivem a dupla mais improvável do ano no cinema e a gente bem sabe que essas duplas improváveis sempre terminam em finais inesperados, radicais ou “ambos os dois”.
Ao chegarem na Turquia, eles vão atrás do endereço que Achi tinha e que a gente logo descobre que na verdade as coisas não eram bem assim mas o acaso, ah o acaso, sempre dá uma mãozinha para os incautos e para os nobres de espírito.
Lia e Achin, sob as mãos mais que precisas do diretor Levan Akin, não vão descansar enquanto não encontrarem Tekla e para sua sorte, logo eles conhecem Evrim, outra advogada trans que trabalha em uma ONG de ajuda a mulheres em situações de perigo e que tem meios mais eficazes para achar a sobrinha perdida.
Ao enxegarmos como Lia e como Achin se comportam em uma cidade grande, longe de suas vidas normais, em outro país onde não falam a língua, é maravilhoso de novo sob a ótica do roteiro perfeito de Akin.
E as interrelações das 3 personagens nesse roteiro vão transformando não só os 2 estrangeiros, mas também a advogada que percebe o quanto todo amor que existe nesta história, a dedicação que existe entre a dupla, o carinho que vai aparecendo, são fundamentais para um dia a dia complicado, onde várias tentativas frustradas de se inserir em uma sociedade cada vez mais cruel acabam se fortalecendo através dessas relações próximas, mesmo que não íntimas.
Tia Lia é vivida por Mzia Arabuli, um grande nome das artes da Geórgia que dá um show neste filme, numa personagem carregada de força, mesmo com toda frustração.
Mas quem rouba o filme pra mim é o jovem Lucas Kankava, que aqui estreia como ator fazendo um Achi sentimental, ingênuo mas muito esperto, com um coração de ouro e um apetite de leão.
Levan Akin é um dos meus heróis cinematográficos há um tempo e eu fico feliz de verdade como ele não erra, como ele sabe o que faz e sempre aguardo com ansiedade seu próximo trabalho.
Numa época onde eu fujo cada vez mais dos dramas e encontro meu porto seguro nos filmes de gênero, no horror, na ficção científica, no suspense, fico feliz demais reencontrando uma possibilidade de filme totalmente original no nível de Caminhos Cruzados.
NOTA: