A gamificação se difunde como convergência de estratégias de game design no campo educacional. Objetivo é tornar a realização de diversas atividades mais prazerosa e recompensadora
João Carlos Massarolo
Professor associado do Departamento de Artes e Comunicação e do programa de pós-graduação em Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos (PPGIS/UFSCar) Publicou A indústria Audiovisual e Os Novos Arranjos da Economia Digital (2010) e Narrativa Transmídia: a arte de construir Mundos (2011). Email: massarolo@terra.com.br
Dario Mesquita
Professor assistente do Departamento de Artes e Comunicação – DAC/UFSCar. Membro pesquisador do Grupo de Estudos sobre Mídias Interativas em Imagem e Som (GEMInIS). Email: dario.mirg@gmail.com
Este artigo concentra-se nas contribuições da narrativa transmídia para o “letramento midiático”, dentro de um cenário que envolve a gamificação do campo educacional e no qual as novas gerações utilizam suas habilidades de storytellers (contadores de histórias), adquiridas pelo método de leitura crítica e escrita criativa, para desdobrar mundos de histórias a partir de uma narrativa canônica. Neste contexto, fan fiction são produzidas pelo processo de colaboração e interação, num ambiente de compartilhamento de histórias, enquanto o aspecto lúdico dos games concorre para a gamificação do campo educacional.
Os jogos representariam um dos melhores sistemas de motivação para resolução de problemas. Quando incorporados à educação, potencializariam o desempenho dos alunos e tornariam a dinâmica do aprendizado mais envolvente e colaborativa
Introdução
Na primeira internet, o conceito de “letramento [1] digital” era entendido no sentido de “inclusão digital”, servindo como uma espécie de portal de acesso a dispositivos computacionais e conexões à rede. Neste período, as transformações tecnológicas que convergiram para o campo da educação e os novos modos de aprender eram mediados por pontos que interligavam os computadores pessoais através dos cabos de rede, motivo da predominância das tecnologias computacionais informativas e comunicativas (TICs), sobre as questões de conteúdo no campo educacional. As conexões, restritas aos espaços fixos, caracterizados pelas salas de computadores, deixavam sem cobertura de dados para navegação lugares com significados históricos, políticos e culturais como, por exemplo, as escolas e os centros educacionais.
Como se pode notar, a noção de “letramento digital” na perspectiva das TICs estimulava, a principio, o desenvolvimento de novas habilidades de manuseio de ferramentas que permitissem o acesso aos computadores, distribuídos a baixos custos e para as camadas mais pobres da população, mas sem levar em consideração as demandas dos usuários por novos conteúdos. Se o usuário quisesse, por exemplo, buscar novas formas de interação social, ou mesmo, atualizar-se em relação a uma determinada obra narrativa de sua preferência, teria que buscar informações em lugares distintos do ambiente digital.
Em contraste, o “letramento midiático”, propriamente dito, não compreende apenas o conhecimento das TICs e o consumo de mídias, mas um “conjunto de habilidades básicas e avançadas relacionando aptidões individuais com práticas sociais, cruzando a fronteira entre o conhecimento formal e informal” (LIVINGSTONE, 2011, p.13). Neste aspecto, o letramento ocorre na sociedade em rede por meio das interfaces computacionais amigáveis e intuitivas, que demandam novas habilidades cognitivas e aptidões individuais para a prática de leitura e da escrita criativa. Na primeira internet, por exemplo, a instalação de um aplicativo era uma tarefa desconfortável, devido às incompatibilidades entre os diferentes sistemas operacionais. Atualmente, as redes móveis de telecomunicações se desenvolvem ao redor das pessoas e das coisas, e os serviços de aplicativos se integraram definitivamente aos dispositivos móveis (Smartphones e Tablets, entre outros). Deste modo, ao tornar possível a existência de espaços hiperconectados e cercados por múltiplas telas, a web 2.0 de caráter participativo, colaborativo e descentralizado, transformou os antigos leitores “passivos” de conteúdo gerado pelos grandes conglomerados de mídia em novos produtores de conteúdos – que são disponibilizados em blogs, sites, wikis, fóruns de discussão, redes sociais e as comunidades de fãs.
O conteúdo midiático, uma vez que é remixado, oferece uma realidade alternativa sobre o que a comunidade de fãs pode falar ou fazer. Neste sentido, a produção dos fãs abrange tanto a interpretação textual quanto os comentários, análises, ensaios opinativos e boletins explicativos, permanecendo aberta ao compartilhamento de arquivos e à pluralidade de opiniões. Essa postura acelera os processos de aprendizagem, fazendo com que a interação dos fãs com o texto canônico represente um percurso que transita da leitura crítica à escrita criativa, num processo de extensão lógica das interpretações textuais.
Mas a releitura que o fã realiza transcende os sentidos estabelecidos pelo texto, gerando novas redes discursivas que transformam as comunidades de fãs num novo espaço de convivência social e de trocas simbólicas. Desse modo, a cultura participatória realiza um movimento de baixo para cima, denominado por Jenkins (2008) de “convergência alternativa”, na qual a força das comunidades de fãs se contrapõe ao modelo da “convergência coorporativa”, praticada pelos grandes conglomerados de mídia. Por meio da interatividade e a participação, fãs se apropriam e transformam os conteúdos midiáticos, promovendo estratégias de letramento que permitem a construção colaborativa do conhecimento na sociedade em rede. Esse processo ocorre, em grande parte, pela capacidade da autoria compartilhada de criar um modelo comunicacional na interação com o texto ficcional, que resulta em contrapartida numa “obra em andamento”. Ou seja, é produzido um texto aberto, sujeito a múltiplos olhares, instituindo a visão de um mundo quebrado em várias partes, mas dotado de significados que transcendem o texto e que dialoga não somente com a obra canônica, mas também com o contexto cultural da comunidade de fãs no qual é produzido, como um trabalho em progresso, demandando interpretações textuais que não se esgotam em si mesmas.
Neste artigo busca-se discutir as contribuições da narrativa transmídia para o “letramento midiático”, na perspectiva das práticas discursivas que estimulam o leitor crítico a desenvolver sua escrita criativa, envolvendo a expansão dos mundos possíveis contidos no texto original. Em especifico, pretende-se analisar a importância da estrutura formal serializada da narrativa transmídia para a expansão e complementação das fan fiction em diferentes direções, assim como avaliar de que modo os aspectos lúdicos concorrem para a gamificação do campo educacional.
Os educadores Joey Lee e Jessica Hammer são cautelosos: as estratégias de game design são um complemento, um recurso como qualquer outro que pode ser usado em sala de aula, como livros e filmes. Deve-se tomar cuidado para não tornar a gamificação o principal aspecto da aprendizagem
Leitura crítica e escrita criativa
A narrativa transmídia, entendida neste artigo como a arte de construir mundos, expande o universo diegético das ficções em diferentes direções e plataformas de mídia, entre as quais: telas de cinema, televisão, internet, HQs, videogames e dispositivos móveis de geolocalização. O mundo de histórias da narrativa transmídia promove a imersão das audiências em novas formas de experiências, nas quais as histórias mais significativas reforçam a noção de pertencimento a um universo narrativo mais amplo. Assim, uma história ao ser desdobrada para outras mídias é compartilhada por novas audiências.
Ao estimular movimentos migratórios das audiências entre diversas plataformas, a narrativa transmídia oferece em cada mídia experiências de mundo que sejam únicas e exclusivas, desde que esse mundo seja estruturado de forma coesa e coerente. As jovens audiências já estão acostumadas a participar do processo criativo de construção dos personagens e de suas histórias, se constituindo no principal motivo da sua migração de uma plataforma para outra. Essas características transformam a narrativa transmídia na nova estética da cultura participatória, pois sua metodologia pressupõe a interatividade e a colaboração.
No ambiente escolar, a migração dos jovens estudantes pelos espaços caracterizados pela mobilidade, interatividade e a colaboração reforça a emergência de uma nova cultura baseada na participação dos alunos nos processos criativos das histórias. Neste sentido, a produção dos fãs, ou fan fiction, que é feita de modo colaborativo no formato de textos ou de filmes e derivadas de obras literárias, séries de TV, filmes, quadrinhos, videogames, entre outras franquias de mídia, pode ser considerada como uma expansão não autorizada do texto oficial em diferentes direções. A produção de fan fiction reflete o desejo do leitor/espectador/usuário de oferecer novas leituras e interpretações às lacunas e brechas descobertas na interação com o material comercial. Ou seja, fan fiction são escritas porque os fãs desejam “algo mais” da obra original, como fez a escritora chilena Isabel Allende, que romanceou as aventuras de “El Zorro” (personagem de HQs, adaptada para série de TV). Já o fan film “Troops” (The Force Net, 1997) de Kevin Rubio, faz uma fusão do universo de Star Wars com a linguagem da série televisiva COPS [2], para mostrar a perspectiva do universo pelo olhar das tropas imperiais, alem de preencher de forma cômica alguns pontos obscuros na narrativa canônica da saga interestelar.
A tendência de recontar uma mesma história de diferentes modos, em diversos suportes, por diferentes ângulos e de pontos de vista inusitados não chega a ser uma novidade. Historicamente, as iniciativas de autores amadores esbarraram na questão dos direitos autorais, motivo pelo qual as narrativas colaborativas engendradas nos processos comunicacionais dos fãs assumem a forma épica, estruturada nos moldes das narrativas televisivas de longa duração, com o objetivo de expandir o alcance de interpretações potenciais da mitologia de uma obra.
Normalmente, os fãs produzem suas histórias com o intuito de preencher lacunas e incompletudes de uma obra, reescrevendo o texto para acrescentar novas informações sobre o que poderia ter acontecido ou para adicionar novas cenas que forneçam uma compreensão adicional das situações ou, ainda, para corrigir cenas consideradas mal escritas, recriando situações vistas como desagradáveis ou reconstituindo trechos omitidos, ignorados ou esquecidos na obra canônica. Muitas vezes, acrescentam cenas faltantes que mostram a reação esperada de uma personagem numa dada situação, ou cenas que foram excluídas pelo autor no texto original. Os produtores de fan fiction referem-se “aosseus cânones como suas Bíblias, e a maioria tenta permanecer tão fiel ao cânone quanto possível, para que outros leitores vejam suas histórias como uma extensão natural dos arcos da história original” (McCARDLE, 2003, p.4).
O trabalho colaborativo permite os produtores de fan fiction acessarem o mundo ficcional, usando suas habilidades para dar respostas críticas e/ou criativas aos mais variados temas que podem ser abordados nas plataformas midiáticas. Fan fiction fazem uso dos recursos ficcionais para provocar indagações em torno de eventos-chave ou trechos críticos de diálogos, com o compromisso de lançar um novo olhar sobre a narrativa de fundo. Para Jenkins (2013, p. 20) as “histórias de fãs não são simplesmente extensões ou continuações da série original”, constituindo-se num universo próprio, dotado de uma lógica capaz de inserir de forma plausível a história paralela ao mundo ficcional da obra original. No entanto, por mais que respeitem os cânones, sempre existe a possibilidade de que alguma parte da releitura seja vista como desrespeitosa pelos detentores dos direitos autorais, em relação a trechos da obra original. Nesse caso, a obra será rejeitada em função dos interesses comerciais e dificilmente será acolhida pelo cânone oficial, mas pode fazer parte do cânone complementar, criado pelas comunidades de fãs e denominada “fânone” [3].
No artigo “Lendo criticamente e lendo criativamente” (2012), o acadêmico norte-americano Henry Jenkins parte do principio de que a produção de fan fiction é de vital importância para o “letramento midiático” contemporâneo, pois suas técnicas conectam o ato de leitura crítica ao de escrita criativa. Tradicionalmente, o processo de ensino e a aprendizagem da leitura de textos nas escolas busca somente a formação de um leitor crítico [4]. Justamente por esse motivo, franquias de mídia buscam cooptar o maior número possível de leitores críticos, pois seu valor no mercado é determinado, em grande parte, pela quantidade de comunidades de fãs envolvidas na investigação das intertextualidades existentes no texto.
Para Jenkins, a formação do leitor crítico é insuficiente quando se trata de buscar um ponto de partida para a escrita criativa e, consequentemente, o desenvolvimento da “capacidade de reescrever textos que não satisfazem nossos interesses completamente” (2012, p. 13). Jenkins identifica cinco elementos presentes na leitura de uma história, que normalmente despertam o interesse dos fãs. Esses elementos são centrais no universo da cultura participatória e também, nas comunidades de fãs. São eles: sementes, buracos, contradições, silêncios e potenciais. De acordo com o autor, esses elementos podem ser caracterizados da seguinte forma:
Sementes: pedaços de informação introduzidos na narrativa para indicar um mundo maior que não é completamente desenvolvido na própria história.
Buracos: Elementos narrativos dos quais os leitores sentem falta e que são centrais à sua compreensão dos personagens.
Contradições: Dois ou mais elementos na narrativa (intencionais ou não) sugerindo possibilidades alternativas para os personagens.
Silêncios: Elementos que foram sistematicamente excluídos da narrativa com consequências ideológicas.
Potenciais: Projeções sobre o que poderia ter acontecido além dos limites da narrativa.
(JENKINS, p. 16-18, 2012)
A produção de fan fiction de uma jovem inglesa, Heather Lawver, descrito por Jenkins [5], é um exemplo de como alguns desses elementos se converteram numa referência do poder da cultura participatória. Por questões de racismo, Heather abandonou a escola ainda criança e mais tarde, depois de ler Harry Potter e a Pedra Filosofal, descobriu vários fandoms [6] da saga, o que mudou a sua vida. O universo de J.K. Rowling é particularmente rico em detalhes, permitindo vários tipos de acesso. As lacunas, contradições e silêncios são pistas em potencial para exploração do mundo de histórias da saga como, por exemplo, as narrativas não contadas sobre como as personagens se tornaram do jeito que as conhecemos. Heather resolveu lançar as sementes do “jornal escolar” na internet para divulgar noticias da Hogwarts ficcional. Os jovens foram convidados a participar desse processo comunicacional de forma lúdica, por meio da criação de um perfil ficcional que permitia o acesso às noticiais do portal e, além disso, os jovens acrescentaram informações de cunho pessoal com o objetivo de reforçar a sua identificação com as personagens do mundo ficcional. Desse modo, crianças e jovens tiveram a oportunidade de explorar o mundo ficcional na perspectiva de uma personagem ficcional.
O projeto de Heather Lawver permitiu a produção colaborativa de textos por meio de blogs e outras plataformas, inovando a forma de narrar e tornando o produto mais interessante e mais atrativo. Esse projeto pedagógico envolveu a distribuição de conteúdos por diversos dispositivos digitais, ampliando o universo dos estudantes e estimulando uma maior participação através das redes sociais colaborativas. Nesse sentido, o projeto pedagógico funcionou como um espaço educacional, permitindo que as regras e normas do mundo ficcional fossem vivenciadas como um mundo real, tornando a participação ativa em uma série de atividades extracurriculares.
Outra forma de promover o letramento midiático consiste no uso eficaz do potencial educativo da linguagem dos games nas atividades regulares de ensino nas escolas. A enorme atração que os games exercem junto ao público jovem, principalmente pelo caráter lúdico de suas atividades e o espaço sociocultural que ocupam, são elementos indicadores da necessidade de sua incorporação pedagógica com o objetivo de explorar as habilidades cognitivas, lúdicas e afetivas, que lhe são inerentes. O potencial dos jogos advém da motivação intrínseca ao ato de jogar, de avançar na exploração dos espaços e superar etapas, fases e desafios que resultam num processo de aprendizagem de natureza lúdica, motivada por uma história que se desenrola de forma significativa e contínua. Nesse âmbito, vem se difundido nos últimos anos uma prática que foca convergir estratégias de game design no campo educacional e da vida cotidiana, com o objetivo de tornar a realização de diversas atividades mais prazerosa e recompensadora. Esse processo estratégico é conhecido popularmente como gamificação [7].
A enorme atração que os games exercem junto ao público jovem indica a necessidade de sua incorporação pedagógica
Gamificação
Nesse atual cenário em que novas trilhas são construídas pelas mídias, e a informação é intensificada na sua produção e difusão, novas experiências lúdicas potencializam e reconfiguram a noção tradicional de jogo. A ideia de uma atividade restrita em suas dimensões de espaço, tempo e participação, que colocam o jogo como uma ação fora da vida diária, é expandida em seus limiares com o auxílio de diversas plataformas midiáticas usadas coordenadamente para transformar os espaços sociais de nosso dia-a-dia em playgrounds. Essa técnica vem ganhando espaço em diversos setores, envolvendo desde projetos em ambientes de trabalho – para aumentar a produtividade e engajamento dos funcionários –, à educação, numa busca de renovar o modelo de ensino aprendizagem para o atual cenário social permeado pelas mídias digitais. A escola Learn to Quest [8], que atende estudantes entre seis e doze anos, tem uma grade curricular semelhante ao de muitas escolas (matemática, geografia, ciências, história etc.), mas o modo como elas são apreendidas foi reformulado. Os alunos são engajados em atividades lúdicas que envolvem a resolução de tarefas como uma quest de jogo – sendo algumas delas secretas, espalhadas pela biblioteca e salas de aulas. Essas tarefas geralmente demandam um trabalho em grupo, como forma de engajar os alunos coletivamente na resolução de problemas, e elas dão acesso a outros desafios que vão sendo desbloqueados, dando um tom de suspense à atividade.
Quando uma tarefa é realizada corretamente, são conferidos pontos de experiência ao aluno, que são acumulados e convertidos em níveis que evoluem a cada determinada quantia, o que proporciona uma clara sensação de progressão. Se uma tarefa não é bem-sucedida, isso não implica em pontos negativos no histórico escolar. Para compensá-la, o aluno deve apenas procurar por novas tarefas para aumentar seus pontos de experiência na disciplina, que são contabilizados e acessíveis através do banco de dados online da instituição. Como se percebe, há um enfoque maior nos resultados positivos da aprendizagem que no desempenho dela. O foco está na experiência de aprendizado num ambiente de engajamento e estímulos positivos, ou seja, uma educação lúdica. Para os educadores Joey Lee e Jessica Hammer (2011), experiências como de Learn to Quest são importantes porque o ensino escolar tradicional focaliza efeitos formais (notas, médias, aprovação, recuperação, reprovação), e não os benefícios emocionais e sociais. A gamificação segue regras que ajudam nas experiências que envolvam emocionalmente e cognitivamente o sujeito na construção de sua identidade e posicionamento social diante de desafios cotidianos.
Experiências educativas como o projeto World Without Oil [9] (2007), realizada em 32 semanas, convidava as pessoa a se imaginarem em um mundo onde os recursos petrolíferos foram esgotados. Nesse cenário pós-apocalíptico, os participantes deveriam trabalhar em grupo para buscar novas formas de gerenciamento de recursos e compartilhar suas experiências pessoais através de vídeos, imagens e textos postados na website do jogo – um portal agregador de conteúdo. World Without Oil construiu a partir dos relatos dos participantes um cenário fictício e lúdico dessa realidade pós-apocalíptica. Um mundo que foi explorado por um amplo debate sobre questões políticas, tecnológicas, ambientais e de sustentabilidade em torno da temática proposta. A experiência permitiu a geração de um conhecimento colaborativo, sob um jogo de interpretação de papéis com a finalidade de salvar a humanidade através do uso sustentável dos recursos naturais.
Essas experiências expõem algumas qualidades importantes da atividade lúdica. De acordo com McGonigal (2012), o ato de jogar não seria oposto ao trabalho, mas sim à depressão, pois sua atividade não causa stress negativo – que origina uma ansiedade destrutiva à autoestima. O jogo resulta de um stress positivo, ou eustress (derivada da palavra eu, que em grego significa bem-estar), experimentado quando não há o sentimento de pessimismo na execução da ação, direcionando o foco da pessoa na busca de melhores resultados, como acontece na dinâmica de ensino da escola Learn to Quest. O eustress é uma sensação ligada a uma rede de sentimentos, como fiero, palavra italiana que significa orgulho, apropriada pelo campo de game design para descrever a sensação do jogador ao superar uma adversidade. E por fim, awe, emoção do sujeito que se reconhece como parte ativa de algo maior que ele mesmo, geralmente associado à espiritualidade e ao desejo de servir na sociedade, como ocorre no projeto World Without Oil.
A gamificação seria uma forma de explorar essas qualidades psicológicas dos jogos para recompensar o sujeito com um trabalho mais satisfatório ao permitir que perceba diretamente o impacto de seu esforço, alimentando assim as expectativas de resultados positivos, contribuindo para reforçar laços sociais com outras pessoas envolvidas em prol de um propósito em comum. McGonigal (2012) elenca os quatro principais elementos dos jogos, que podem ser facilmente assimilados a quaisquer atividades: objetivo – uma meta a ser alcançada; regras – definição de meios para alcançar essa meta; sistema de feedback – resposta que os jogadores obtêm do desempenho deles durante a atividade, informando assim o quanto falta para alcançar o objetivo; e participação voluntária – o sujeito deve aceitar as regras impostas para entrar na atividade.
Na escola Learn to Quest, se uma tarefa não é bem-sucedida, isso não implica em pontos negativos no histórico escolar. Para compensá-la, o aluno deve procurar novas tarefas para aumentar seus pontos de experiência na disciplina
A autora afirma que esses quatro elementos podem ter pesos diferenciados, como no caso da escola Learn to Quest, em que o sistema de feedback tem uma importância maior que as regras, que podem variar de uma atividade para outra. Isso porque os jogadores não querem necessariamente experimentar o sistema de jogo e seus parâmetros bem definidos, mas aproveitar a experiência do jogo, em “explorar e aprender e aperfeiçoar […] eles genuinamente se importam com os resultados de seus esforços” (MCGONIGAL, 2012, p. 27) empreendidos na experiência lúdica e sua imprevisibilidade. Através dessa dinâmica, os jogos representariam um dos melhores sistemas de motivação para resolução de problemas. Quando incorporados à educação, eles potencializariam o desempenho dos alunos e tornariam a dinâmica do aprendizado mais envolvente, recompensadora e colaborativa. Apesar dos benefícios elencados da gamificação como estratégia educacional, Joey Lee e Jessica Hammer (2012) mostram-se cautelosos, enquanto McGonigal (2012) é mais entusiasta. Esses autores consideram as estratégias de game design como um complemento educativo, um recurso tal como qualquer outro que pode ser usado em sala de aula (como os livros, filmes etc.), e que se deve tomar cuidado para não tornar a gamificação como o principal aspecto da experiência de aprendizagem dos alunos.
Para Lee e Hammer, experiências como a Learn to Quest são importantes porque o ensino escolar tradicional focaliza efeitos formais – notas, médias, aprovação, recuperação, reprovação – e não os benefícios emocionais e sociais
Considerações finais
A proposta pedagógica de Jenkins, de incentivar a leitura critica dos conteúdos produzidos pelas mídias massivas, encontra respaldo na tradição cultural que remonta ao próprio surgimento dos meios de comunicação tradicionais e opera no centro das divergências entre produtores e consumidores. Essa tradição informa ao leitor crítico das mídias massivas o modo de funcionamento das empresas de comunicação e como a informação é distribuída pelos canais convencionais. O processo de convergência midiática provocou mudanças nesse paradigma e as novas plataformas de conteúdo midiático se tornaram um ponto de referência do processo enriquecedor que é a produção de conhecimento através de múltiplos suportes.
Atualmente, a estratégia dos conglomerados tradicionais consiste em transformar a internet no veículo sinérgico das mídias. Essas mudanças tornam necessário que as escolas ampliem e transformem suas grades curriculares para obterem uma maior participação dos estudantes. Nesse cenário, não basta aprender a consumir mídias de uma forma adequada, se não estiver apto a se expressar. Na convergência midiática, as competências culturais e habilidades envolvem um conjunto de práticas socioculturais relacionadas às formas de uso da leitura crítica e da escrita criativa, tendo em vista a produção de conteúdo midiático para diferentes plataformas.
Por sua vez, a proposta de gamificação da vida prioriza o elemento lúdico dos games dentro de um sistema de reforço positivo, agregando deste modo aos atos cotidianos uma forma de motivação advinda do prazer intrínseco do ato de jogar. Nesse sentido, a noção de repetição (game over) se mostra mais apta para o desenvolvimento das habilidades cognitivas dos alunos do que um currículo moldado pela necessidade de pontuar a vida escolar a partir dos critérios de game design.
Este artigo procurou analisar as práticas da pedagogia informal que surgem na cultura participatória, com o objetivo de analisar as novas formas de produção de conteúdo midiático. Uma das conclusões que emergem deste estudo pressupõe, entre outras coisas, que a convergência midiática estimula a construção colaborativa do conhecimento, enquanto que a convergência alternativa, motivada pelos fãs, expande a fronteira entre o conhecimento formal e o informal. Nesse novo ecossistema midiático, as formas de cultura participativa emergentes, aliadas às plataformas de conteúdo, conectam os usuários e as coisas ao mundo das histórias.
ARAUJO, R. Letramento digital: conceitos e pré-conceitos. (2008) Disponível em: . Acesso: 10 jan 2013.
ECO, U. Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1989.
FERREIRA, E.Cultura participativa e letramento digital: uma análise exploratória através da aplicação da pesquisa etnográfica no fórum de discussão Portal Xbox. (2011) Disponível em: . Acesso em: 12 jan.2013.
GALLO, P. & COELHO, M.G.P. Aquisição dos letramentos necessários à cultura da convergência: a narrativa transmídia na escola. (2011) Disponível em: Acesso em: 03 fev. 2013.
JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo, Editora Aleph, 2008.
__________ Lendo criticamente e lendo criativamente. In: Revista Matrizes, ECA/USP, São Paulo. V. 6, N. 1-2 (2012).
LEE, J.; HAMMER, J. Gamification in Education: What, How, Why Bother? (2011). Academic Exchange Quarterly, 15(2). Disponível em: . Acesso: 20 Jan 2013.
LIVINGSTONE, S. Internet literacy: a negociação dos jovens com as novas oportunidades on-line. In: Revista Matrizes, São Paulo, ano 4, n. 2, jan./jun. 2011.
McCARDLE, M. Fan Fiction, Fandom, and Fanfare: What’s All the Fuss? (2003). Disponível em:
>. Acesso em: 30 Jan. 2013.
McGONIGAL, J. A realidade em jogo: por que os games nos tornam melhores e como eles podem mudar o mundo. Rio de Janeiro, Editora Best Seller, 2012.
[1] Letramento é a tradução do termo inglês literacy e seu significado transcende e engloba a noção de alfabetização. [2] Série televisiva criada por John Langley e Malcolm Barbour. Exibida pelo canal FOX desde 1989. [3] “Fanon” no original: “fan” (fã) + “canon” (cânone). [4] No capitulo sobre “A inovação no seriado” (1989, p. 129-130), o acadêmico italiano Umberto Eco parte do pressuposto de que um texto é produzido e, ao mesmo tempo, é constituído por um duplo “leitor modelo”. O “leitor modelo de primeiro nível”, ou o “leitor ingênuo”, seria aquele que usa a obra como um dispositivo semântico e é vítima das estratégias do autor. Por outro lado, o “leitor modelo de segundo nível”, ou o “leitor crítico”, seria aquele que avalia a obra como um produto estético e analisa as estratégias postas em jogo, assim como suas variações, se constituído num leitor letrado e consciente das intertextualidades existentes no texto. [5] “Porque Heather pode escrever”. In.: Cultura da Convergência (2008, p. 227) [6] Termo usado para Fan Kingdom, ou “reino dos fãs”, e designa as comunidades de fãs . [7] Neologismo traduzido de gamification. [8] A primeira escola baseada em games no mundo foi inaugurada em 2009, na cidade de Nova York, com financiamento da Fundação MacArthur e da Fundação Bill e Melinda Gates. [9] Uma produção independente apresentada pelo Independent Television Service (ITVS), com financiamento da Corporation for Public Broadcasting (http://www.worldwithoutoil.org).
Fonte: Revista Ensino Superior Unicamp: http://www.revistaensinosuperior.gr.unicamp.br/artigos/narrativa-transmidia-e-a-educacao-panorama-e-perspectivas