Há anos, muitos anos mesmo, que eu não tenho a sensação de ter assistido o melhor filme do ano e esse filme vir de Hollywood, Estados Unidos.
Eu saí do cinema ontem tão atordoado com Pecadores que eu não tinha certeza se eu tinha que ir pra casa ou se eu tinha que procurar algum cantor maravilhoso e tentar entrar em transe pra nunca mais voltar.
Pecadores é o novo filme de um dos meus diretores favoritos, Ryan Coogler, por quem eu fiquei totalmente encantado em seu filme de estreia Fruitvale Station, que inclusive também é estrelado pelo ator principal de Pecadores, o cada vez melhor ator Michael B. Jordan. Na verdade Jordan estrela todos os filmes de Coogler, que além desses 2 tem Creed e os 2 Pantera Negra. Só filmão.
Mas eu tinha desistido de Coogler porque achei que ele tinha entrado pra esse abismo que são os filmes de super heróis e que de lá não sairia tão cedo mas que bom que eu estava errado.
Eu tentei não ler muito sobre PEcadores, só li as resenhas das mesmas pessoas que eu leio sempre e tentei fugir das piadinhas da internet mas uma delas ficou na minha cabeça: Pecadores é A Cor Púrpura visitada por Blade.
O que seria uma piada de mau gosto acaba sendo um belo resumo do filme. Resumo um tanto quanto reducionista mas pode-se dizer que Pecadores se passa nos anos 1930, em Mississipi, onde os negros são muito segregados, trabalhando em plantações de algodão, frequentando missas e no máximo dos máximos indo a bares, botecos, clubinho, juke joints, como eram chamados, para beber, dançar e ouvir blues.
Ah claro, a atividade mais recorrente da população negra naquela época era sobreviver fugindo dos brancos racistas da KKK.
Nesse universo os gêmeos Smoke e Stack, ambos vividos por Michael B. Jordan, depois de anos tentando a vida pelo mundão afora, voltam para sua cidadezinha natal e recrutam seus amigos mais próximos, todos que já tiveram um passado meio picareta como eles próprios, para os ajudarem a abrir um desses clubinhos de blues para os negros se divertirem.
Para lá eles levam, entre outross, seu primo mais novo Sammie, filho de um pastor que é totalmente contra ele cantar e tocar seu violão. O que eles não sabiam era que o moleque tinha se tornado, com anos estudando sozinho, um grande músico e vocalista, daqueles de tirar o seu chão.
Os gêmeos compram um galpão abandonado de um desses brancos gordos velhos desgraçados e o avisam que não querem ele e seus amigos nazis antes dos nazis lá por perto.
O legal é que Pecadores acontece em 24h, ou nem isso. O dia que os gêmeos compram o lugar e recrutam seus amigos, é o mesmo dia que o clube abre suas portas com música boa, comida boa e a melhor bebida possível: cerveja irlandesa, vinho italiano e uísque do sul americano.
Lembra em A Cor Púpura que tem aquele clubinho de madeira meio caindo aos pedaços com as melhores cenas do filme? Esse é o tipo de lugar que os gêmeos abriram. E detalhe: todo mundo da região tem medo dos gêmeos, considerados perigosos, cruéis e inclementes.
Com os clientes chegando, tudo vai dando muito certo, com o personagem do grande Delroy Lindo tocando gaita, piano e entretendo todo mundo com a melhor música possível, atee que ele chama Sammie para tocar e cantar, o filho do pastor que promete entregar tudo.
O que eles não esperavam, e nem eu, era que o diretor Coogler estava preparando já para o meio do filme, uma das melhores sequências da história de Hollywood, uma catarse coletiva provocada pela música do jovem músico, algo que seu pai pastor radical tinha lhe avisado que poderia acontecer, que era ele se conectar com outros mundos, ou pior, com demônios de outros mundos.
Mas o que vemos, o que Coogler nos entrega, é uma festa que realmente alimenta o espírito e sim, conecta aquele lugar com outros mundos, passado e futuro, que é o que a música, a arte faz, tirando o chão de todo mundo, fazendo o calor chegar, os corpos suarem, a cabeça expandir e o coração se abrir para a felicidade.
Quando disse que esse era um dos filmes do ano foi muito por causa dessa sequência, que poderia facilmente cair no piegas, no cafona, mas que nas mãos de um diretor desses já é clássica, já é a referência ao quê e como deve ser feito daqui pra frente, não aceitamos menos que isso e estamos ditos.
Mas e os vampiros?
Pois é, os vampiros são espertos, se ligaram no poder do soul, no poder de Sammie e querem isso pra eles, porque como o vampirão mór veio da Irlanda com o que nos é mostrado no filme uma musiquinha chinfrim comparada ao blues, ele precisa desse poder.
E a tentaiva de carnificina e invasão de corpos e mentes comeca, com uma das metáforas mais óbvias, um dos simbolismos mais fáceis para a vampirização, mas que, de novo, pelas mãos do Coogler acaba parecendo ser algo que a gente não espera.
Um dos segredos, aliás, de Coogler neste filme, é meio que avisar tudo o que vai acontecer e também o que está acontecendo. Ele trata seu espectador com respeito o suficiente pra querer dizer “olha, isso que você está vendo é sim uma metáfora, isso outro é uma surpresa boa, essa é uma surpresa ruim”. Nada em Pecadores é “largado” para interpretações errôneas que por ventura apareçam.
Não, os vampiros não são legais como em Garotos Perdidos, os brancos querem sim que os negros e os chineses se explodam, o pastor não quer mesmo que seu filho saia da igreja para não poder mais ser manipulado. E daí pra frente.
Tanto que o diretor coloca vampiros numa história dessas onde ele poderia facilmente ter colocado um monte de homem branco racista.
Esse universo todo criado por Coogler é a perfeita tradução dos nossos tempos que, olha que doideira, são desde sempre. O Mississipi de 1930 ressoa nos EUA de 2025 onde parece que apesar de todos os pesares, a música é do demo, os vampiros continuam sugando o que e quem podem, os racistas continuam queimando tudo e os negros e todas as minorias, os chineses, as bruxas, as mulheres solteiras, continuam vivendo à margem da sociedade.
Se o mundo de Hollywood fosse um lugar ideal, ano que vem ao invés de darem Oscar pra dublês, deveriam dar Oscar para elenco completo de filme e assim Pecadores levaria na certa uma estatueta dourada. Além de Micheal B e de Delroy Lindo, o filme tem 2 das mulheres mais incríveis dos EUA nos dias de hoje que são Hailee Steinfeld e minha musa Wunmi Mosaku, como a “bruxa” ex de um dos gêmeos que eleva o filme a um patamar acima quando entra na história.
Em um filme sobre o blues eu não esperava menos do que uma trilha perfeita, que neste caso ficou nas mãos de um colaborador antigo de Coogler, o geniozinho sueco Ludwig Goransson, vencedor de 2 Oscars com filmes do Nolan. Aqui ele cria as canções todas do filme e a trilha incidental que, como ele já fez em Tenet, vira um dos personagens principais do filme, ajudando e muito a contar essa história toda, principalmente nos flashbacks de áudio, uma das coisas que mais me deixou chocado no filme, já que a gente não vê imagens da história passad que está sendo contada, mas ouvimos o que aconteceu junto da narração, o que trás as lembranças a um novo patamar de importância narrativa.
Outro ponto alto do filme vem pelas mãos da incrível diretora de fotografia Autumn Durald Arkapaw que contou a história de Coogler, uma história violenta, um drama pesado e complexo, um horror sanguinolento, com a luz mais inventiva possível, cheia de claro-escuro, cheia de contrastes, com muita sombra e por consequência muita luz, o que deixa os personagens irem de um para outro para melhor “explicar” seus textos, seus diálogos.
Tudo isso que eu escrevi exprime um pouco do trabalho perfeito de Ryan Coogler mas seu “ofício” de diretor, sua sabedoria de universo criado e melhor que tudo, seus ensinamentos a partir de cenas e sequências e detalhes é o que faz de de Pecadores a obra de arte que é.
E que será lembrada para sempre e como disse ali acima, será usada como referência. Legado melhor não há.
NOTA: