Um filme que começa com um rolezinho de patinete a milhão com Too Real do Fontaines DC que emula o início de Trainspotting, não pode ser ruim, certo?
Ainda mais porque Bird é o novo filme da minha preferida Andrea Arnold, estrelado pelos divos e feiosos Barry Keoghan e Franz Rogowski.
Mas não só isso.
Bird tem a melhor trilha sonora do ano. Além do Fontaines DC do início, tem mais música deles no meio, tem Sleaford Mods, Blur, Coldplay, fora que a trilha sonora em si é do Burial. Vamos comprar o disco, se tiver pra vender, claro e ficar feliz?
Não, Bird é a Andrea Arnold no seu ponto mais alto como autora e diretora. E ouso dizer, visionária.
As três grandes qualidades de seus filmes estão em Bird de novo: os animais, que são sempre personagens importantes em suas histórias e aqui tão importante que dá até o nome ao filme; a importância nos detalhes da diretora é coisa de se estudar na escola e aqui ela não faz por menos.
E sua assinatura é sempre o ponto de “transmutação”, o ponto quase metafísico, o momento “religioso” de suas histórias, onde ela nos arrebata, tira nossos pés do chão, nosso coração deixa de bater por alguns momentinhos e quando a gente percebe, tem que respirar de novo pra não apagar.
Mas e o filme em si?
Bird (Franz Rogowski) é um cara estranho que um dia, do nada, aparece para Bailey (Nykiya Adams) perguntando se ela sabe onde fica um endereço, que ele não sabe como chegar lá. Do alto de seus espertos 12 anos de idade, a garota explica onde é o prédio, sai for e sem que ele perceba, o segue até lá, tentando descobrir o que esse estranho quer no prédio que a mãe da menina cresceu.
Mãe, aliás, que é uma pedra no sapato de Bailey, com quem ela não mora por não aguentar a doideira da progenitora e que mesmo com mais 3 filhos pequenos para cuidar, é a doidona, cheia das escolhas erradas, das drogas erradas, de tudo errado.
Mas e o Keoghan? Ele é Bug, o pai da Bailey, com quem ela mora e treta o tempo inteiro. Ele também é cheio de escolhas erradas como sua ex esposa, mas parece ter pelo menos meio pé no chão. Por exemplo, ele resolveu casar com sua novva namorada, novíssima, aliás e quando a filha pergunta com que dinheiro ele vai casar, ele mostra a ela um sapo que secreta um alucinógeno e pretende ganhar um monte de dinheiro vendendo isso pros amigos punks squatters que adoram dançar Jolly Fucker dos Sleaford Mods e cantar em coro Yellow do Coldplay para que o sapo fique feliz e comece a secretar a droga.
Tudo isso num apartamento gigante onde moram o pai, a filha, já a namorada/futura esposa com sua filha pequena e o filho mais velho de Bug (14 anos) que acabou de descobrir que a namorada está grávida.
No meio dessa história familiar toda, o roteiro de Andrea Arnold nos leva a momentos onde Bailey precisa aceitar que vai ser daminha de honra do casamento do pai, precisa ajudar Brid a encontrar quem procura, precisa ajudar suas irmãs pequenas a sobreviverem a mãe desvairada e principalmente, ou não, continuar em uma “gangue” com seu irmão e seus amigos.
Bird é um drama punk familiar, muito, mas muito melhor e mais delicado e emotivo que praticamente todos os filmes lançados ultimamente com pretensões a serem “o filme sério do ano”, cheios de suas pieguices e truques para nos fazer emocionar.
O Bug de Barry Keoghan é dos personagens mais fofos e mais toscos de todos. O que o ator faz nesse filme é o que a gente sempre soube que ele poderia fazer mas não pôde. Keoghan vai aos extremos e a gente fica feliz por estar testemunhando momentos de genialidade de um ator em um grande filme
E mesmo dando o título ao filme, Bird é um personagem não tão grande mas que é de extrema importância para Bailey. Como um anjo do Win Wenders, só que os humanos enxergam e mesmo assim não acreditam no que estão vendo. Ou como o corvo do Sandman, sabe? Isso tudo pelas mãos e corpo e voz do muso Franz Rogowski, que poderia tanto faz esse papel quanto trocar com Barry e fazer o pai que tudo bem. Aliás, os 2 “homens” na vida de Bailey são metaforicamente o mesmo e fisicamente quase o mesmo, o que deixa o filme mais incrível ainda por causa, de novo, do cuidado com os detalhes da diretora Arnold, que nos mostra o quanto pensar e planejar e saber o que se faz são os segredos de se fazer um grande filme.
Enquanto escrevia aqui, pensei em cenas do filme que estão entre as melhores de 2024, como a dos punks cantando Coldplay, do Bird protegendo Bailey com o namorado violento da mãe ou quando pai, filho e filha andam de scooter ao som de Lucky Man do The Verve. E como já disse, a abertura apoteótica do filme.
Bird me fez chorar, me fez rir muito, me fez refletir, me fez ter saudade de uma vida que eu não vivi, me fez ficar feliz por retratar uma cena contemporânea incrível e distante e principalmente me fez lembrar que fazer cinema deste nível é uma dádiva dos Deuses.
Filme do ano, de mãos dadas com Ainda Estou Aqui.
NOTA: