Nem sei por onde começar, são tantas as questões mas a mais importante é: quando foi que o Walter Salles virou o melhor diretor de cinema do mundo? Como foi que eu perdi esse evento?
Na verdade nem perdi.
O evento é este Ainda Estou Aqui, o filme do ano, o filme que o cinema brasileiro precisava, o filme que se for bem “apresentado” pela Sony Classics nos EUA pode ter várias indicações não só ao Oscar mas a todos os próximos prêmios importantes de cinema, desde Filme Internacional e eu aposto neste, já que este ano não tem filme gringo neste nível, nem o Figo Sagrado, nem o Almodóvar, nem nada.
Fernanda Torres só não vence o Oscar ano que vem com sua “contida” Eunice Paiva, porque a Academia de Cinema de lá prefere uma mulher que grita, como Demi Moore no também preferido A Substância.
Eunice Paiva, a mãe do Marcelo Rubens Paiva, autor do livro Ainda Estou Aqui, vizinho de Walter Salles na época da história do filme, é uma mulher que é um vulcão internalizado com as lavas e as explosões bem controladas para o que interessa. Ela não tem um vulcão dentro dela, ela é o vulcão. A gente vê isso em duas cenas importantes do filme: quando da foto para a revista Manchete que ela pede para sua família olhar para a câmera e sorrir, apesar de todos os pesares, e quando ela está presa, em uma cela sozinha, e o queridíssimo diretor de fotografia Adrian Teijido cria uma pintura digna de Caravaggio, com seus claros e escuros em película, fazendo parecer que ela está enterrada e sendo filmada dentro de um caixão, com a escuridão à sua volta e só seu rosto aparecendo na luz mais linda possível.
Ainda Estou Aqui é sobre um dos mártires da ditadura militar brasileira, o engenheiro e ex deputado Runes Paiva, que foi delicadamente arrancado de sua casa e principalmente de sua família para nunca mais voltar.
Ele foi acusado de ser comunista, assim como foram acusadas sua esposa Eunice e sua filha adolescente Eliana, que ficaram presas e foram torturadas por dias.
Salles, a partir de um dos roteiros mais bem escritos da história do cinema brasileiro, conta essa história, de um pai de uma família amorosíssima que só não desmorona porque a mãe é uma das mulheres mais fortes que o cinema já mostrou.
E que tem o final mais poderoso do ano, com uma Fernanda Montenegro em um de seus maiores papéis da vida, em cadeira de rodas, vivendo no planeta Alzheimer, com um olhar melancólico mas não morto, que me fez chorar copiosamente no cinema, a ponto de soluçar de passar vergonha.
Ainda Estou Aqui é o “filme iraniano” que o cinema brasileiro precisava fazer. É um drama que nos pega no estômago, que incomoda, que cutuca, que causa ânsia, mesmo a gente sabendo como termina.
Só que não é um filme histérico, desesperado, barulhento, como poderia ser e como muita gente tem achado que deveria ser.
Ainda Estou Aqui é Eunice Paiva, a mãe protetora, a esposa inconformada pelo marido, a advogada incansável, a mulher que não desiste.
Mas Ainda Estou Aqui também são os 5 filhos de Eunice e Rubens, que não se largam, que não a largam, que se apoiam, que se entendem e que quer ela ou não, são sua base, seu suporte, seu sopro de vida sempre.
Tudo isso “embalado” por uma das trilhas mais lindas que ouvi recentemente, criada pelo meu preferido Warren Ellis, o australiano companheiro do Nick Cave que aqui trabalhou sozinho e me deixou emocionado cada vez que um acorde novo entrava na história.
Ainda Estou Aqui só não é o filme iraniano finalmente feito no Brasil porque está a um passo a frente das obras do gênio Asghar Farhadi.
A dor brasileira, absolutamente específica, é transformada no maior drama brasileiro por Walter Salles, alguém que sabe muito de cinema e que sabe exatamente o que quer saber e que, na minha opinião, pela primeira vez na carreira fez exatamente o filme que queria e que deveria fazer, da maneira que o filme deveria ser feito.
Ainda Estou Aqui é filme gringo para brasileiro, é filme brasileiro pra gringo, a ponto de não assustar nem um nem outro. Não é nem estranho pra brasileiro nem pra gringo, é drama desesperado que ressoa em toda família brasileira como também em qualquer gringo. É filme muito bem realizado, escrito, dirigido, daqueles que ficam conosco por dias depois de sairmos do cinema, que voltam à memória, que nos fazem sorrir e nos fazem arrepiar do nada.
E aqui cito mais uma vez Drummond que dizia que se você contar bem a história da sua vila, ela vira a história de todas as vilas do mundo.
O “Aqui” do Salles, do Marcelo, da Eunice, do Rubens, meu, seu é o todo aqui, são todos os aquis, onde ainda estamos e onde sempre estaremos.
NOTA: