Não tem como começar a escrever qualquer coisa sobre Zona de Interesse sem pensar no conceito da “banalidade do mal” da filósofa alemã Hannah Arendt onde ela teoriza sobre o mal indiscriminado praticado pelos oficiais nazistas na Segunda Guerra Mundial que não era um mal demoníaco, mas era um “mal constante e consciente” que fazia parte da rotina dos oficiais nazistas como instrumento de trabalho. Ou seja, a banalidade do mal é o mal que virou comum de ser praticado.
Isto posto, vamos ao novo filme do inglês Jonathan Glazer, brilhantemente baseado no livro do também inglês Martin Amis que faleceu este ano, no dia da estreia do filme no Festival de Cannes de onde saiu com o Grand Prix do juri, o maior prêmio do festival depois da Palma de Ouro.
O filme no mostra a vida do comandante do campo de Auschwitz Rudolf Höss e sua esposa Hedwig (a mais que perfeita Sandra Huller de Anatomia de uma Queda) que moram com sua família em uma casa com piscina, jardim, pomar, horta, empregadas e empregados à disposição que para a família é a casa dos sonhos.
O único detalhe é que o campo de concentração fica do outro lado de um muro cinza bem alto cercando os fundos da casa, separando a vida alemã de benesses dos prisioneiros em seus últimos dias de existência à espera, sem saber, da morte nas câmaras de gases.
Os gritos de desespero, os gritos dos oficiais, os tiros, o desespero, o cheiro, a fumaça, nada disso respeita o muro cinza e nada disso incomoda a família de Rudolf e Hedwig.
A rotina diária da família com aniversários, piqueniques, festas no jardim, visitas de amigas, roupas caras chegando em sacos que acabaram de atravessar o muro, nada disso tira Hedwig do prumo.
E tudo isso é filmado com um quase respeito religioso por Glazer, documentando essa rotina alemã à beira do precipício moral da humanidade.
Ao mesmo tempo que ele afasta sua câmera dos nazistas, tirando toda e qualquer possibilidade de uma identificação com o espectador nos privando de closes ou mesmo de planos próximos, ele aos poucos vai nos mostrando o mal que vive nos corpos dos nazistas, como por exemplo quando uma empregada que não limpou o chão direito ouve a dona da casa dizendo que vai pedir para o marido espalhar suas cinzas sobre um campo qualquer se aquilo se repetir.
Ou quando a mãe de Hedwig vai visitá-la e descobre que a casa está sendo renovada a 3 anos e que mesmo com tudo do melhor que ela encontra, não aguenta o que ouve e vê acontecendo do outro lado do muro.
Em uma cena o comandante tem uma reunião em casa com os engenheiros que foram levar plantas dos próximos fornos a serem produzidos em Auschwitz e que se tornariam o padrão para os outros campos nazistas e a partir de então o diretor Glazer faz questão de nos mostrar chaminés fumegando pelo filme inteiro, em reflexos, à distância, logo ali no canto do quadro, como se a fumaça e o fogo que delas saíam fossem SÓ os resquícios de um trabalho infindo, porque lá os fornos funcionavam 24 horas ininterruptas.
A rigidez da direção aliada a uma fotografia limpa e perfeita para, de novo, nos mostrar o quanto aquela casa era “normal”, vai nos levando cada vez mais para dentro daquela família, mesmo com todos os pés atrás que o diretor deixa, com os distanciamentos, com as provocações que só são quebrados pela trilha cadavérica, que funciona quase que como uma sirene de tempos em tempos para que acordemos daquela história de terror travestida de comercial de família feliz de margarina.
Zona de Interesse é um filme sem precedentes em um ano onde os melhores filmes são todos com muitos e muitos precedentes.
O que Glazer fez aqui, depois de 10 anos sem lançar nenhum filme novo sendo seu último Sob a Pele, é algo que faz com que diretores pelo mundo todo se rasguem da melhor das invejas, que é tratar um tema tão espinhoso, pra dizer o mínimo, de uma forma tão arrebatadora.
Glazer é o cara que dirigiu o clipe de Virtual Insanity do Jamiroquai, Karma Police do Radiohead, o cara que estreou na direção de longas com Sexy Beast, um dos melhores filmes de “gângster inglês”, onde ele meio que recriou este personagem tão icônico. Ele é um dos diretores de publicidade mais premiados de todos os tempos e tudo isso foi sendo alimento para a alma deste cara que não só é meu ídolo desde sempre mas que agora, espero eu, se torne uma referência no cinema de uma vez por todas.
NOTA: