Dias antes do anúncio dos filmes da competição oficial do Festival de Cannes de 2022, dizia-se que teríamos o lançamento do novo filme de um grande diretor que o festival francês amava.
Todo mundo já ficou ouriçado achando que David Lynch lançaria seu novo filme que ninguém sabia que ele tinha feito.
E que ele não o fez.
A surpresa foi Crimes do Futuro, o novo filme do diretor canadense, Deus do body horror, Deus do cinema, aleluia salve salve David Cronenberg.
Desde 2014, com Mapa das Estrelas, que Cronenberg não lançava nenhum longa novo e isso foi deixando seus fãs, admiradores e pessoas que dependem espiritualmente de sua obra como eu, nervosos a ponto de achar que seu filho Brandon vinha trilhando o mesmo caminho no body horror, o que poderia ser uma consolação ao sumiço de David.
Mas descobrimos agora que o problema é Cronenberg conseguir dinheiro para filmar, porque fazer filmes é o que ele continua querendo.
E lá veio Crimes do Futuro, escrito claro que pelo próprio Cronenberg 20 anos atrás e estrelado por, olha que elenco: Viggo Mortensen, Léa Seydoux, Kristen Stewart, Scott Speedman e Don McKellar (sim o Scott Speedman de Minha Vida de Cachorro, em seu maior papel da carreira).
Na primeira sessão do filme para convidados em Cannes começou a palhaçada de “gente saiu do cinema vomitando”, “metade da audiência deixou a sessão”. Mas na verdade o filme foi aplaudido de pé por 6 minutos ininterruptos e o resto é silíncio.
Crimes do Futuro se passa em um futuro alternativo (tá, distópico desgraçado), onde, por causa das mudanças climáticas, as pessoas pararam de sentir dor e de se infectarem por doenças. O que poderia ser algo bom, na verdade se tornou um drama horroroso, já que você pode ficar doente e não saber que desenvolveu algo em seu corpo, ao mesmo tempo que algumas pessoas, como Saul Tenser (Mortensen), conseguem desenvolver novos órgãos que geralmente não servem para nada.
Tenser é um artista performático do underground, que com a ajuda de sua parceira/cirurgiã Caprice (Léa Seydoux), realiza shows onde seus novos órgãos são extraídos de seu corpo, ao vivo em teatros, com público presente e sempre captados em vídeo como parte da performance, onde Caprice, além de tudo, tatua os órgãos internos de Tenser.
Ah, já ia me esquecendo: nesse futuro, o sexo não existe mais. Essas performances, a cirurgia plástica são o novo sexo. (tanto que em uma cena de beijo de língua, Tenser diz uma das melhores frases do filme e as cenas mais sexuais do filme são sempre com facas e bisturis).
Quem sai um pouco da linha, como Tenser e sua companheira Caprice, tem suas vidas vigiadas bem de perto pelo governo, aqui no papel da dupla Timlin e Whippet (Kristen e McKellar), dois burocratas que idolatram Tenser, já que são os responsáveis conservadores, como arquivistas, por preservar sua “obra”, seus órgãos extraordinários nas performances.
Obviamente os burocratas são os sapatênis que querem ser do underground mas não sabem como se comportar nos shows, por exemplo, exatamente como “na vida real”.
No futuro de Cronenberg, onde ter poder total sobre seu corpo e realizar cirurgias plásticas é o novo normal, ou mais ainda, é o novo sexo, essas pessoas que tem esse poder e essa liberdade sobre si mesmas continuam sendo vigiadas pela polícia, pelo governo, aqui no filme em uma forma mais romantizada pela dupla de conservadores.
Mas a partir das informações que essa dupla vai recebendo, entram em cena outras pessoas ligadas a poderes superiores, como o “bonzinho” Detetive Cope (o ótimo Welket Bungué) e outra dupla não tão legal, que a gente não sabe se elas trabalham para o governo ou para uma empresa, onde mais uma vez Cronenberg nos joga na cara que a ideia de poder ultrapassa os limites do público e do privado, nos dá um nó nas nossas cabeças segundo quem manda em tudo de verdade.
Parece familiar? Pessoas que fazem o que querem de seus corpos sendo vigiadas de perto e perseguidas pelos poderes superiores?
Isso tudo é levado a níveis maiores de complicações ideológico-morais quando Tenser encontra Lang (Scott Speedman), um dos líderes de uma comunidade que vem realizando experimentos secretos mais no underground ainda, transformando alguns de seus órgãos internos em um nível absurdo fazendo com que eles consigam processar e digerir materiais tóxicos como plástico.
Sim, essa turminha come e digere plástico.
Crimes do Futuro tem um dos inícios mais punks dos últimos tempos com uma sequência lindamente filmada de uma mãe matando seu filho de seus 9 anos de idade por ele comer plástico: Brecken, o menino, é filho de Lang, a primeira criança que nasceu com esse “dom”, como ele chama, mas que Djuna, a mãe, considerava uma aberração a ponto de matar o filho, avisar o pai e se entregar à polícia, em mais uma metaforazinha de leve sobre uma mulher que não suporta não ter abortado e que resolve seu “problema” tarde demais.
Como eu disse, é incrível pensar que este roteiro foi escrito 20 anos atrás e Cronenberg já falava de direitos sobre nossos corpos, de sermos vigiados, de quem ousa não pertencer ao novo normal (de hoje em dia).
Crimes do Futuro é uma alegoria ao que vive nos nossos dias a comunidade LGBT, mais especificamente as pessoas trans.
Cronenberg não imaginou o quanto ele escreveu foi sobre a questão trans, como ele disse em uma entrevista a revista Vanity Fair: “Quando escrevi (o filme) há 20 anos, não estava pensando nisso especificamente, mas isso é sempre uma questão de quem controla os corpos dos cidadãos. Quem controla os corpos das mulheres, quem controla os corpos das pessoas trans. É tipo, você tem permissão para fazer isso? O governo pode realmente dizer o que fazer com seu corpo ou não, mesmo que isso não afete mais ninguém?”.
Em Crimes do Futuro não só o governo, o poder, continuam tentando monitorar e dizer o que se pode ou não fazer com os corpos, mesmo em um mundo onde esse poder é absolutamente pessoal e incontrolável, mas nesse futuro o papel do capitalismo e de sua aversão ao “progresso” fica muito evidente na forma que os “servidores públicos” agem.
Enquanto eu assistia esse novo Cronenberg eu só pensava o quanto a realidade das pessoas trans na maioria das vezes é espetacularizada (pra não dizer ridicularizada, principalmente num Estado de extrema direita onde vivemos) e o quanto artistas como Roberta Close como a primeira transexual capa da Playboy brasileira, Orlan filmando suas cirurgias plásticas e vendendo seus órgãos retirados, Genesis P-Orridge e sua esposa Lady Jaye se transformando em um único ser também com as cirurgias reconstrutivas, o quanto essas pessoas são importantes para o desenvolvimento humano, importantes para que não cheguemos ao futuro de Cronenberg.
Neste futuro, os crimes do título ainda são os mesmos que os de hoje, são você querer fazer o que bem entender, são você querer SER quem você bem quiser, são querer você querer se transformar em quem ou no quê você quiser e como David disse, mesmo que isso não afete mais ninguém.
O melhor de tudo é que toda essa história nos é contada por um dos grandes estetas do cinema, o David Cronenberg que contrói mundos a cada filme que faz, que começou a fazer cinema com o horror dos nossos monstros internos em Videodrome e Scanners, com o body horror radical gore, que se transmutou no diretor de Crash e Uma História de Violência, onde os monstros éramos nós mesmo, onde o body horror era nada mais nada menos que nossas vontades mais extremas.
A obra prima que é Crimes do Futuro, onde a transformação do corpo é o novo sexo, onde no futuro a dor, a doença e até a morte são formas de se contar histórias, de se viver, de ser quem você deseja ser nos é mostrada da forma mais linda possível para um futuro desgraçado, onde todas as paredes estão descascadas, onde as ruas são escuras, onde as pessoas parecem desconhecer as cores primárias, onde nada é agradável a não ser ver pessoas transformando seus corpos para que nossas vidas também sejam transformadas.
Mas tudo tem consequências, sempre.
O radicalzão Tenser, que vive de ser literalmente aberto e remexido internamente, chegou a um ponto onde o mais mundano dos atos, que é se alimentar, se tornou extremamente inconfortável para um homem tão poderoso, a ponto dele precisar se sentar em uma cadeira especialmente criada para ele conseguir levar a colher cheia a sua boca, o que me lembra muito alguém que sofre de Parkinson, que também precisa de formas alternativas para tudo.
Tenser atingiu níveis que nem ele mesmo esperava atingir e que descobre da forma mais poética e, claro, radical possível, em um dos finais mais emocionantes do ano, o que era mais do que esperado para um filme do mestre dos mestres, David Cronenberg.
(Pra nossa rote, Crimes do Futuro entra em cartaz nos cinema por aqui no meio de julho e algumas semanas depois o filme entra no catálogo do Mubi)
NOTA: