Chega ao fim o fatídico 2020, ano bissexto que não vai deixar saudades.
Apesar de todos os pesares, ou talvez por causa deles, muitos filmes maravilhosos (e músicas e livros e vídeos e arte e mais arte) foram lançados em 2020 para acalmar e elevar a nossa alma, na minha opinião a única coisa que salvou o ano.
Ou todo ano.
Para fechar com chave de ouro, aos 45 do segundo tempo literalmente apareceu pra eu assistir Nomadland, o vencedor do Festival de Veneza, um dos filmes mais aclamados do ano mas que vai ser lançado só no início de fevereiro.
Para quem costuma frequentar esse blog há um tempo talvez se lembre de quando eu escrevi sobre Domando o Destino, o filmaço anterior da roteirista e diretora Chloe Zhao sobre o domador de cavalos que passa a vida sofrendo por não poder mais domar os animais depois de um acidente que quase o deixou paralisado.
Chloe Zhao havia criado um filme que é um estudo sobre a alma humana, sobre a solidão e a vida.
Nomadland, seu mais novo filme, não poderia ser mais pertinente a sua filosofia.
O filme conta a história de Fern (Frances McDormand, genial obviamente), uma mulher que representa o atual declínio do tal império americano.
Ela é uma nômade em uma país cada vez mais povoado dessas pessoas que tudo perdem, emprego, lar, perspectiva de vida e principalmente suas histórias.
Fern trabalhava em uma empresa grande que depois de fechada, a cidade que se formou a sua volta deixou de existir. Como Zhao conta no início do filme, o CEP foi cancelado.
A empresa abandonada, as casas abandonadas, as pessoas levaram o que conseguiram carregar e o mito da cidade fantasma passa a ser cada vez mais real.
Acompanhamos a vida de Fern, que vive em sua van caindo aos pedaços, indo de cidade em cidade atrás de empregos temporários, vivendo a vida de nômade, estacionando algumas vezes em acampamentos regularizados e muitas outras vezes onde acha lugar para parar sua casa com o mínimo de segurança.
Para entendermos direito o que acontece, em um momento ela em uma loja encontra uma antiga amiga e uma das filhas, já crescida, pergunta se é verdade que ela é uma homeless, uma “sem lar”, ao que ela responde que ela é uma “sem casa”, mas nunca “sem lar”.
Quanto mais convivemos com Fern mais entendemos como essas pessoas sobrevivem, como é o senso de comunidade nômade, onde eles se ajudam muito enquanto estão juntos mas que esse estar junto nunca dura muito porque, na minha opinião, essa sensação de pertencimento já não existe mais para essas pessoas.
Fern nos mostra que prefere dormir em seu carro a ter uma cama confortável, um banheiro com água quente a disposição.
O que ela sempre procura é um lugar para lavar sua roupa.
E Fern cuida com o maior cuidado possível de tudo que tem em seu carro/lar: os pratos que seu pai lhe deu, a roupa, a comida, as coisas que vai achando pelo caminho que acabam substituindo outras que já não lhe servem mais.
E de vez em quando ela vai até o galpão onde guarda as coisas que sobraram de sua antiga casa onde pega algumas coisas antigas e outras ela se desfaz.
A triste conclusão que chegamos ao assistirmos a vida de Fern é que tudo é muito triste na vida e que a felicidade pode estar em um abridor de latas que você encontra num brechó.
Uma das certezas sobre Nomadland é que Fern só é Fern por causa da Mestra Frances McDormand.
Frances nunca é uma das minhas atrizes preferidas, daquelas que eu fico esperando por seu novo filme. Até que euu assisto cada um de seus novos filmes e bato na minha boca e a agradeço nas minhas preces.
Fern é uma personagem que diz tanto sobre o nosso hoje com seu cabelo mal cortado, suas rugas, sua força, sua solidariedade e principalmente sua falta de laços, de raízes e por ser consciente de que sua história, apesar de existir, está se perdendo como todo o resto da existência.
A diretora Zhao mostra mais uma vez que é a rainha das diretoras, a destruidora de sonhos, a “colocadora de pés no chão”, a ceifadora da felicidade e por tudo isso muito provavelmente uma das mulheres mais importantes fazendo Arte (com A maiúsculo) nos dias de hoje.
Chloe Zhao já entrou para o meu panteão de pessoas que eu agradeço por estarem vivas ao mesmo tempo que eu, como diz aquele ditado: o mundo tem 500 milhões de anos mas seja feliz porque você viveu no tempo que David Bowie esteve vivo”.
NOTA: