Dora e Gabriel é mais um filme brasileiro com pré estreia no Festival online do Itaú Play, disponível e imperdível neste link.
Como Pacarrete de ontem, Dora e Gabriel é um filme que me tocou profundamente mas por motivos diferentes do filme da Marcélia Cartaxo.
Dora e Gabriel foi escrito e dirigido por Ugo Giorgetti, um dos grandes diretores da cidade de São Paulo, um dos caras que melhor retratou os personagens paulistanos no cinema, nas situações mais paulistanas possíveis.
Desta vez não é diferente.
Dora e Gabriel são paulistanos, apesar dele ter nascido em Beirute, no Líbano, que é cidade e não comida, como ele diz em certo momento do filme.
São Paulo, como toda cidade gigante, é formada por imigrantes tanto quanto ou mais ainda que por gente que nela nasce, principalmente hoje, em 2020, onde para sorte de quem mora por aqui, vemos os sotaques e as culturas distantes se mostrarem mais e mais pelas ruas.
De Dora não sabemos nada, só que ela é free lancer e que estava indo para o sorteio do consórcio e se tivesse sorte, sairia com um Corsa novinho, ou algum carro que o valha.
Mas ela não teve tanta sorte e foi pega por bandidos e trancada no porta malas do carro de Gabriel, junto com o libanês que também não entendeu como em questão de segundos ele foi abordado a mão armada no semáforo e quando se deu conta estava confinado com essa mulher.
Em Pacarrete tivemos a felicidade de ter uma atriz como Marcélia Cartaxo desfilando de salto alto, dando piruetas com o rosto avermelhado por mais de 90 minutos nos entregando o que melhor podemos esperar de um filme.
Em Dora e Gabriel, um dos maiores de todos, Ary França, faz a mesma coisa, só que deitado num espaço escuro e fechado de sei lá, 3 metros quadrados.
Depois do filme que se passa na cabine de um avião sequestrado, na mesma semana temos outro filme mais claustrofóbico ainda: são mais de 70 minutos de ação num porta malas trancado.
Enquanto no filme alemão o sumido Joseph Gordon-Levitt não explode com o avião mas entrega um personagem que é uma bomba (desculpem, não resisti), Ary França e sua sabedoria artística nos dá de bandeja um Gabriel tão humano e simpático e fofo que por muitas vezes eu fiquei com vontade de abraçá-lo.
Gabriel é o contraponto físico e psicológico de Dora: enquanto ele é quase um monge zen budista sábio, ela é um poço de desespero e grosseria.
Enquanto ele se abre e nos deixa com vontade de saber mais e mais sobre o personagem, eu torcia pra ela ser pega pelos bandidos em algum momento e ser largada em algum meio do mato de alguma estrada perdida por onde eles passam.
Mas Gabriel não existiria sem Dora e os dois existem e agem muito em relação ao que eles ouvem e tentam sobreviver ao que talvez esteja acontecendo.
As metáforas com o nosso dia a dia, de estarmos reféns em um carro desgovernado, presos na quarentena existem, mas não se deixe enganar, o filme é muito mais que isso.
Aliás Ugo, sei que você vai ler isso, então já te dou ideia de fazer um prólogo com a história de Gabriel, vou até te mandar umas anotações pra te animar.
Não só Gabriel é muito bem escrito e identificável como eu tenho certeza que muito do sucesso do personagem se deve ao grande ator que é Ary França.
Vou falar bem do Ary mais e mais porque ele é um dos ídolos da minha vida que por voltas que a vida dá se tornou um dos meus grandes amigos.
Provavelmente o cara com quem eu mais divido as angústias da quarentena e com quem mais discuto detalhes bestas de filmes que assistimos.
Em outra vida, lá nos idos dos anos 1980, Ary França apareceu na minha vida como o grande cara do teatro do Ornitorrinco, uma cia de teatro de São Paulo que foi fundamental na minha formação intelectual.
Eu saía de suas peças, depois de assistí-las sempre mais de uma vez, sempre com a sensação de querer saber mais e mais.
E quando via o Ary em cena, sorria de orelha a orelha porque sabia que sua fisicalidade e sua profundidade desferida em seus milhares de tons de voz me transportariam para um mundo totalmente particular, não só naquelas 2 horas de espetáculo mas depois por muitos momentos de lembrança.
Sei que o Ary vai ler isso e vai sorrir em alguns momentos mas deixo registrado que mais que uma resenha sobre Dora e Gabriel essa é uma arta de amor ao meu grande amigo.
Se você ainda não assistiu, não perca Dora e Gabriel que além disso tudo, tem o final mais Lars Von Trier versus Beetlejuice do cinema brasileiro de todos os tempos.
NOTA: