Hoje é o 100º dia de 2020 (o ano que nunca vai acabar) e hoje posto o 100º filme do ano.
Pra comemorar a efeméride, um filme que me deixou chocado, feliz, apaixonado e mal, tudo ao mesmo tempo, um dos vencedores do Festival de Sundance de 2019, Sometimes Never Rarely Always.
O título do filme são as respostas possíveis a um questionário que mulheres nos EUA respondem quando vão participar de algum programa social de saúde.
Não vou me adiantar.
O filme conta a história de Skylar, um garota que vive num bairro periférico da Pensilvânia, de uma família obviamente desestruturada, com irmãs mais novas já perdidas, mãe casada com um cara que não respeita nenhuma das mulheres da casa onde moram e pior que tudo isso, para uma adolescente, Skylar é uma pária na escola.
Não é uma das lindas, não é cheerleader, não é popular e ainda é chamada de vagabunda.
Mas ela não deixa por menos e vive como uma punkzinha deve viver, afrontando todo mundo, participando do show de talentos com uma música super deprê e o melhor, não levando desaforo para casa.
Apesar de em sua casa, por causa do namorado da mãe, desaforos não faltarem.
Tudo isso culmina no dia que Skylar descobre estar grávida, o que poderia desestruturar mais ainda sua vida. Mas ela é decidida e com a ajuda da prima, seu braço direito, vai para Nova Iorque realizar um aborto em uma clínica autorizada, meio que tipo o SUS deles, se existisse essa maravilha por lá.
Lembra do filme After Hours, Depois de Horas, do Scorsese, lá dos anos 1980, onde um cara fica “preso” na rua uma madrugada inteira e não consegue voltar para casa exatamente porque se perdeu no turbilhão da madrugada da cidade grande?
A partir do momento que Skylar chega em NY, sua vida parece entrar num turbilhão como o do Depois de Horas.
O que deveria ser, ao seu ver, um procedimento tranquilo, acaba sendo um tour de force que parece infinito.
E mesmo para uma menina tão cheia de atitude e savoir faire, Skylar é uma adolescente e as inseguranças e os medos que os adolescentes tentam mascarar o tempo inteiro acabam aparecendo sempre nos momentos difíceis. Como esse.
O filme da diretora e roteirista Eliza Hittman é de uma delicadeza cinematográfica ímpar.
Em momento algum ela usa os problemas que a jovem vai passando pelos quase 90 minutos para extrapolar qualquer leitura abusiva, inapropriada.
Hittman já tinha mostrado a que veio em seu filme anterior, um dos meus preferidos de 2017 Beach Rats, onde os moleques lindos ratos de praia da periferia de Los Angeles usam seus corpos quase que ingenuamente para conseguirem um dinheirinho e uma droguinha.
Desta vez, essa ingenuidade junto a uma delicadeza que existe quase que no filme inteiro, apesar de toda a profundidade e força da história, mostram que Hittman é a diretora a ser acompanhada com certeza.
Never Rarely Sometimes Always, as respostas do teste da consulta que Skylar faz em NY, são uma porrada no estômago e outra no meio das nossas fuças, exatamente em um momento que eu, pelo menos, achava que nada mais aconteceria de radical no roteiro, depois de tudo o que vemos a menina passar.
Mas Hittman não nos poupa, não poupa suas personagens e não poupa sua história de nos mostrar um ponto de visto absolutamente único.
Sou fã de carteirinha.
NOTA: