Tenho tanta coisa a dizer sobre o novo filme do (podre) Polanski que vou começar pelo final: O Oficial e o Espião é o melhor filme de 2020 até agora e provavelmente vai estar na minha lista de top 10 do final do ano.
Agora, do começo.
Peço por favor que você não me julgue por ter primeiro assistido o filme do totalmente execrado diretor e, segundo, por ter amado tanto o filme. Acho que essa semana tivemos uma aula de conseguirmos abraçar alguém apesar de seus delitos. É muito pra se pensar mesmo.
Eu não assistia filmes dele há tempos, menos pela polêmica toda e mais pela qualidade das obras que ele vem nos entregando desde os anos 1990.
O Oficial e o Espião é o melhor filme do baixinho polonês desde os anos 1970. Só que mais, o filme é de uma maturidade e genialidade que o cara demorou muito, acertou bem e errou muito pra aprender e alcançar.
O Oficial e o Espião é filme que só mais uma meia dúzia de diretores entregariam. E metade desses já morreu.
É como se o Kurosawa fosse francês e fizesse um filme histórico e sóbrio.
Como se Jean Renoir resolvesse chutar o balde e mandar todo mundo à m*rda em um filme.
Como se o Sergio Leone transformasse a melancolia de seus caubóis de espaguete em peso na consciência de oficial francês no auge do anti semitismo europeu, que acabou dando no que deu.
O filme conta a história clássica do J’Accuse do Emile Zola, do artigo que o escritor francês publicou em um jornal onde ele acusava todas as autoridades possíveis do exército e do governo francês da época, todos vivos e leitores ávidos, de terem sido coniventes com um erro de julgamento onde desonraram e condenaram à prisão um oficial do mesmo exército por traição, no famoso e vexaminoso caso de Alfred Dreyfus, vivido por um irreconhecível e ótimo Louis Garrel.
Quando o erro foi descoberto e levado à luz dos fatos por um oficial que ajudou na condenação, os “donos” da verdade e do exército preferiram deixar as coisas como estavam para não passarem por outro vexame, que seria maior ainda assumir um erro ainda mais tendo que se desculpar com um judeu.
O oficial que não aceita isso, Georges Picquart, ganhou vida no corpo do ótimo Jean Dujardin. Só que dirigido pelo gênio do Polanski, merece entrar para o cânone do cinema francês.
Picquart/Dujardin fica em cena 95% do filme, só não está em contra campos de suas cenas, onde pessoas falam com ele, algumas cenas da prisão de Dreyfus e em 2 momentos do julgamento final.
Eu, hoje, horas passadas de ter visto o filme, acho que ele deveria ter estado também nesses 5% restantes. Esqueça tudo o que você já viu de comédinhas e draminhas com Dujardin e aceite um novo homem, um mito.
Falando em mito, falemos de Polanski.
Com O Oficial e o Espião o diretor entra em outro nível de cinema, de entrega e de “fazer cinema”.
Não tem absolutamente nada que eu não tenha gostado no filme.
A grandiosidade da sequência inicial dá o tom do filme; quando Dreyfus é fisicamente expulso do exército em meio a centenas, de verdade, de soldados e oficiais, sob um céu nebuloso perfeito e uma turba de minions berrando “traidor” por acreditarem em tudo o que o governo lhes diz, a câmera e o rigor de Polanski já nos avisam: preparem-se que esse filme não é para principiantes.
Uma outra sequência absurda que demora minutos que parecem eternidades, se passa dentro de uma igreja quando Picquart vai pegar um envelope com documentos de uma espiã que os deixa no lugar mais insuspeito possível. Acompanhamos como se na igreja estivéssemos, num silêncio respeitoso e sepulcral, onde ouvimos cada um dos passos dados lá dentro, quase que a respiração do padre ao longe, até o momento que o oficial se levanta, atravessa a nave e o solado de couro de sua bota serve como um contador de tensão para que ele se abaixe sutilmente para pegar o envelope lá deixado.
Outra sequência de mestre, do Mestre, é a cena do oficial desacreditado por seus superiores que volta para casa e a encontra toda revirada, seus livros no chão, sua intimidade violada e ao invés do surto, ele se senta ao seu piano e toca, como se fosse O Pianista de Brody, o último personagem relevante de Polanski, que tocava seu piano em meio aos escombros deixados pelos nazistas. Neste filme, esta cena é quase que uma homenagem e um prólogo daquele, meio que um ideia anterior só que tida posteriormente.
Ah e tiro de misericórdia, a gota d’água, o TOQUE DE MESTRE com todas as maiúsculas, pra mim, é a maneira que Polanski resolve cinematograficamente o tão aguardado J’Acusse de Zola.
Coisa de diretor que pensa cinema, que acredita na forma em função do conteúdo, coisa de quem sabe escrever pensando filme, de quem pensa filme a partir de roteiro, da forma mais clássica possível para surpreender a cada fotograma.
Poderia continuar esse post falando do elenco impecável do filme, da direção de fotografia de mestre, da trilha linda do Desplat, da senhora Polanski, Emmanuelle Seigner e de muito mais mas digo: assista o filme.
20 anos atrás eu comecei esse blog com um post sobre meu encontro com Polanski em São Paulo, numa sessão no Cinesesc de seu primeiro filme, Faca na Água, e ontem eu fiquei pensando muito do quanto a minha admiração por ele foi por água abaixo depois de tantos anos e tantos escândalos e do quanto esse filme me fez pensar na importância desse cara na minha vida, para o bem e para o mal.
NOTA: