O Irlandês é daqueles filmes que quando entram os créditos finais eu penso imediatamente: como vou assistir esse bando de filme meia boca que vejo durante o ano depois de assistir uma obra prima dessas?
O Irlandês é um filme “de velhos”, de sabedoria, de experiência, de fazer questão de criar um filme como um presente pro público.
Martin Scorcese é um gênio de diretor que como muito poucos, sabe filmar o que quiser, como quiser e ainda inventa moda, com sequências tão lindas nesse Irlandês que parecia que eu estava assistindo um filme de um ótimo diretor iniciante.
Isso, com certeza, porque Scorcese é um amante do cinema, é o cara que restaura filmes, que lança diretores, que produz, que ensina, que faz documentários musicais como ninguém, que fica anos sem filmar mas passa esse tempo todo fazendo cinema de outras formas.
O petardo O Irlandês é baseado na história real de Frank “The Irishman” Sheeran, um motorista de caminhão que lutou na Segunda Guerra na Itália e que se diz um “pintor de paredes” logo que começa a se envolver com mafiosos italianos como Russell Bufalino, na Filadélfia dos anos 1950.
Logo ele vira o braço direito de Jimmy Hoffa, o chefe sindicalista icônico, amigo dos mafiosos e de Presidentes americanos, cujo desaparecimento misterioso levanta até hoje questões de “quem matou Hoffa” em um nível de curiosidade como o mais famoso mist´rio americano que é “quem matou Kennedy”.
O Irlandês é vivido magistralmente por Robert De Niro. E digo a ponto de roubar o foco de Joaquin Phoenix como a grande atuação do cinema americano de 2019.
Hoffa é vivido magistralmente por um Al Pacino que, estreando sob o comando de Scorcese, mostra que um ator, quando quer, quando é bem dirigido e quando tem um papel à sua altura, faz o personagem ganhar um tamanho e uma aura tão inéditas que, ao ter pensado no Jimmy Hoffa de Jack Nicholson, fique até com pena daquele filme de 1992.
Agora, quem rouba o filme é o mini mostro, o mini ícone sumido que reaparece com toda pompa e circunstância, Joe Pesci.
Só para deixar claro, os minis da frase acima são uma piada respeitosa com sual altura, que fica sempre bem patente no filme.
Pesci, que todo mundo acreditava estar aposentado dos filmes e que na verdade disse que só não filmava porque não recebia roteiros que o interessasse, cria em Bufalino um novo tipo de mafioso, o cara que é frio, cruel, calculista sem ser grosseiro e violento, mas sempre gentil, amigo, mais parecendo um pai mandando o filho irlandês matar alguém com meia dúzia de tiros na cara.
O Irlandês, achava eu, seria mais um filme de mafiosos do Scorcese, que já nos deu Cassino e Os Bons Companheiros que dificilmente seriam superados por qualquer outra coisa.
Ainda mais um filme de 3 horas e meia, de 209 minutos de duração, pra que, minha gente?
O filme que custou mais de 170 milhões de dólares, que usou uma tecnologia bizarra de boa de rejuvenescimento facial com seu elenco inteiro, para poder contar a história em 3 momentos tão distantes uns dos outros é melhor do que meu mais esperançoso sonho poderia imaginar.
Já falei do que O Irlandês fez por Joe Pesci. Ou melhor, o que Pesci faz em O Irlandês.
Já podem dar o Oscar de coadjuvante pra ele e fim.
Agora, o melhor de O Irlandês foi ter colocado De Niro e Pacino juntos, finalmente com cenas e mais cenas deles juntos conversando e mostrando porque são quem são hoje em dia, dois monstros da dramaturgia, dois atores com mais de 100 anos de experiência juntos que nos mostram o que é fazer cinema, o que é ser delicado, o que é saber usar o corpo, a voz.
Muitas cenas do “casal” principal do filme são inesquecíveis, mas tem uma em particular que me deixou em choque, quando os dois conversando, Pacino bate na mão de De Niro, como um gesto de “eu sei o que estou falando, vai por mim” e Scorcese corta do plano geral que vem mostrando os dois em cena para o close das mãos juntas e volta para a cena aberta onde De Niro dá um sorrisinho concordando que sim, o cara sabe e eu escuto.
Isso para falar de De Niro. Seu irlandês de olhos azuis, tão educado, tão esperto e tão obediente com quem tem que ser já é um marco do cinema. O cara é o responsável por mortes e mais mortes de adversários de seus mentores, por assim dizer e em um momento chave do filme diz não sentir remorso de nada.
O irlandês fez o que tinha que ser feito e só sente mesmo não ter o amor de sua filha Peggy, que desde menina não ligava muito para o pai e que ao crescer, só não ignora mais porque não pode.
E chegamos em Anna Paquin, que vive Peggy. Anna passa o filme inteiro calada, só observando seu pai, fulminando-o com olhares, sempre em momentos chave de sua vida em família e em uma única cena, ela fala. Praticamente a mesma palavra repetida 3 vezes. E só.
Scorcese consegue com isso criar uma personagem tão importante, tão pivotal em um filme que em 209 minutos fala 1 palavra 3 vezes, em uma única cena. É um absurdo, mais um dos toques do gênio que é Marty.
Para dar na nossa cara, repete o feito com Jesse Plemons, que faz o filho de Hoffa. Ele passa o filme inteiro mudo, participando de momentos importantes e finalmente quando fala, fala sobre um peixe que comprou para um amigo, em um dos diálogos mais surreais do filme, importantíssimo enquanto distração de narrativa.
Scorcese faz o que quer com seus atores, com o roteiro, com a câmera, com os enquadramentos, com as gruas e em O Irlandês, faz o que quer com as câmeras lentas, em alguns poucos e lindos momentos do filmes e o mais lindo de tudo, em travellings tão impressionantes e relevantes que o filme por si só parece uma aula magna de como ser um bom diretor.
O Irlandês é o filme que a gente (acha que) já assistiu, com a história que a gente (acha que) já conhece, mas de uma forma como nunca vista e contada antes.
Colocar o personagem principal contando sua história aos 80 e tantos anos de idade, relembrando sua vida épica e trágica é uma forma do próprio Scorcese mostrar que ele também, um cara de 77 anos de idade, que tantos filmes já fez, em O Irlandês está o filme definitivo de gangsters, de mafiosos americanos, o filme dos filmes, com o melhor trio de personagens principais possível e com um cineasta no pico de sua genialidade criativa, de novo, aos 77 anos de idade e que, pelo que parece, não vai entrar em declínio tão cedo.
E ouso dizer que O Irlandês fecha com chave de ouro a época (quase infinda) de filmes de macho americano, de homens que matam indistintamente, que não conversam, que gritam, que bebem, que fumam charuto e que não tem desculpas para todo o absurdo que cometem.
Martin, senhor Scorcese, Deus do cinema, te entrego minha alma e meu corpo, faça o que quiser comigo!
NOTA: