Eu deveria começar este texto com um #AlertaFilmão. Mas cheguei a conclusão que deveria criar outra # do tipo #TenhaMedo ou #AlertaTranstorno.
Em 2018 eu elegi Hereditário como o filme doente do ano. Coringa é sem a menor sombra de dúvida o filme doente de 2019. Só que com uma diferença: naquele a culpa era do diretor e roteirista Ari Aster. Neste, a culpa é do maior ator em atividade nos dias de hoje (como falo há anos) Joaquin Phoenix.
Nós vivemos em um mundo onde os super heróis são uma realidade. Vingadores: Ultimato bateu todos os recordes de bilheteria. A Marvel não para de lançar filmes desses seres superiores. Na tv, não precisa fuçar muito que a gente encontra séries e mais séries sobre esse mundo todo, onde a mais interessante pra mim é The Boys, da Amazon, baseada no Garth Ennis e sua HQ de 2006.
Sim, anos atrás os super heróis, todos esses que a gente não aguenta mais ver, estavam em suas HQs, alimento pros nerds e estranhos.
Coringa vem pra mostrar duas coisas: primeiro que ninguém aguenta mais filme/série de super herói como ainda são, já podiam ter parado com isso uns bons anos atrás. Segundo que se quer falar desses mundos absurdos, é só trazê-los para um paralelo bem próximo da nossa realidade que eles, os super heróis, super vilões, super milionários, super tudo, viram tão reconhecíveis ao nosso dia a dia que Coringa, um filme sobre um doido que se acha excluído da “sociedade” poderia ser um filme, sei lá, sobre um tipo como nosso presidente Bozo.
O Coringa queria ser um humorista de stand up. E cuidar de sua mãe. Só.
Coringa, o filme, mostra exatamente isso, o cara que trabalha como palhaço, nos falidos anos 1970 em Gotham City e que por motivos alheios à sua vontade ou mesmo à sua realidade, acaba sendo o vilão que todo mundo odeia amar.
Joaquin Phoenix como Coringa é uma história a parte. Ele engole Jack Nicholson, o Coringa do Tim Burton e o regurgita. Ele engole Heath Ledger e não só o regurgita como me fez achar que aquele personagem foi pro fim da fila da história.
Joaquin, o melhor ator de cinema da Via Láctea (sim, de novo) se joga tão fundo na criação deste personagem ensandecido que desde o primeiro momento que o vemos em cena acreditamos que é o Coringa de verdade, doente, ensandecido, problemático, traumatizado, o cara que literalmente gargalha para não chorar.
Em sua trajetória nas 2 horas e pouco de filme, o Coringa vai descendo numa espiral aos mais profundos níveis de terror e desespero.
O palhaço sem graça, sem piadas boas, que não sabe lidar com crianças, que apanha de adolescentes, sem nenhum traquejo social, é um palhaço de verdade de verdade no pior sentido do substantivo que vira adjetivo, com sua roupa desestruturada, com seu cabelo que parece uma peruca mal-ajambrada, com seu sorriso sem graça e com a vontade de fazer graça a qualquer custo, mas sem ter a menor noção de como fazê-lo.
O Coringa de Phoenix parece um monstro do Cronenberg, que a cada espreguiçada, a cada dança, vai saindo de dentro de seu próprio corpo, transformando-se na aberração que mora no apartamento ao lado e que a gente só se dá conta tarde demais, depois do estampido do primeiro tiro.
Sua mãe, idosa, enferma, fofa, com olhos azuis tristes, é a raiz de todos os seus pesadelos despertos. Ou assim achamos.
Seus colegas palhaços são os seus fantasmas do dia a dia, numa vida que não o levaria a lugar nenhum se ele não percebesse disso, antes tarde do que nunca.
Gotham, sua cidade em frangalho, em meio a uma greve dos lixeiros, com podridão em todos os cantos, é o cenário ideal para o aparecimento deste vilão, como se ele surgisse de suas poças de chorume.
E o pior de tudo, ou o mais óbvio: Arthur Fleck, o Coringa antes de sê-lo, não tem consciência do fundo do poço. Quando ele vai ao Arkham procurar informações sobre sua mãe ele mesmo pergunta como alguém pode parar num lugar daqueles, num dos diálogos com maior carga dramática do filme. Ele não sabe para onde está indo e muito menos onde vai chegar, no sentido mais filosófico da coisa.
Todd Phillips, o co roteirista e diretor de Coringa, conseguiu o inconseguível (como talvez dissesse Gil em alguma canção não escrita dos anos 80): ele transformou um dos personagens mais desgraçados da cultura pop n”O” personagem mais desgraçado.
Ninguém é pior que o Coringa.
Eu tinha dúvidas, sempre penso no pior vilão de todos, faço listinhas anuais mas Coringa mostra e prova por A + B que com esse roteiro, com essa direção e com Joaquin, não tem pra mais ninguém.
Coringa tem o ritmo mais estranho possível, ele funciona numa progressão geométrica ao contrário, bem lento, bem arrastado até, mostrando o quanto o dia a dia desse ser é um tédio e inútil, suas horas não servem pra nada, nem pra chegar em casa e dar comida pra sua mãe.
Coringa é estranho, filme que dá raiva por ser muito climático e de repente, BAHM, vem uma cena que te tira o chão e que você pensa “ok, me ganhou agora, não precisa de mais nada”. Dali a pouco vem outra mais absurda que você lembra da anterior e pensa “ah, era por isso então, que desgraça” e assim vai.
A progressão geométrica ao contrário me deixou em alguns momentos, na meia hora final de Coringa, totalmente sem fôlego, não sabendo como eu deveria respirar. E quando saí do cinema, juro, não conseguia raciocinar direitinho.
Coringa é o maior exemplo de mind fuck do ano, o filme que literalmente fode com a sua cabeça.
Os planos, os enquadramentos, os movimentos de câmera e principalmente a luz de Coringa são de outro mundo.
E aqui faço uma previsão: se o diretor de fotografia Lawrence Sher não ganhar o Oscar, eu nem sei o que faço. E fica a dica, ele é colaborador antigo do diretor Phillips, desde seus tempos fazendo o absurdo Se Beber Não Case.
Coringa é amarelo, do mais claro ao quase laranja, uma cor quente e vibrante. Mas Coringa é o filme mais depressivo de todos e muito pela cor. O amarelo do filme é o amarelo da bile, do resto do estômago, do que volta à boca no gorfo, quando o vômito já acabou.
Coringa venceu o Festival de Veneza e poderia ter vencido Cannes, Toronto, o Oscar e mesmo assim será um filme acima disso tudo. Como também é Bacurau e Parasita, filmes que existem apesar de todo o resto.
Coringa é o filme mais sem moral possível, onde o palhaço idiota vira um bobão que vira um canalha que vira um mito e daí aparece o gado seguidor. Tudo sem querer (se ao final do filme você não pensar no gado do presidente Bozo, você não entendeu nada).
Eu saí do cinema com o cérebro em curto. Parecia que eu tinha levado uma pancada bem forte na cabeça, que alguém tinha batido em mim com um pedaço de pau e eu não vi de onde veio nem como veio.
Se os filmes de super heróis são sempre auto referentes e com a mania de serem vanguardistas de alguma forma, Coringa de novo vai para o extremo oposto: a premissa do filme é ser um irmão do Scorcese de Taxi Driver e de O Rei da Comédia, inclusive tendo Robert De Niro no seu melhor papel das últimas décadas como um apresentador de talk show que é o sonho de pai que o Coringa nunca teve e que como todo bom pai, acaba por decepcionar sua prole mais dia menos dia.
Apesar de tudo isso, Todd Phillips não se afasta tanto da iconografia do homem morcego, do próprio berço do Coringa. Os Wayne estão no filme, o pai ainda vivo, Bruce ainda criança na cena mais fofa do filme, quando aparece pela primeira vez.
Coringa é um filme de loucura, como é Midsommar, como é The Wolf Hour, que não chega ao nível desses dois mas que mostra a desgraça que causa os gatilhos em quem tem doenças mentais.
E o gatilho do Coringa, o personagem, é a vida, são as pessoas, é andar de metrô, é a mãe do menino sentada no banco da frente do ônibus, é seu chefe, é a vizinha no elevador, é até seu choro que vem como gargalhada.
Eu duvido que Coringa mude a forma como a indústria faça filmes de super heróis, como eu achei que o filme do Wolverine velho mudaria. Coringa vem mostrar que essa isso seria possível, mas seus prêmios e louvores não pagam as contas estratosféricas dos estúdios de uma indústria cara.
Joaquin Phoenix nunca seria o Coringa de um filmão do Batman, nem combinaria. Ele é o Coringa dessa ode ao “coitadismo” como desculpa para a barbárie, o vilão que é o espelho dos nossos tempos, do 2019 onde esses homens do mal são elevados a categoria de mitos.
Phillips quis transformar um filme de vilão de super herói em drama e acabou fazendo o filme mais assustador, mais doente e mais disruptivo do ano.
NOTA: