Dedicado a Mario Arturo Alberto Guidi
É com satisfação que apresentamos a 11ª edição da Revista GEMInIS, uma publicação do “Grupo de Estudos sobre Mídias Interativas em Imagem e Som” – PPGIS/UFSCar. Um número especial em homenagem ao professor Mario Arturo Alberto Guidi, que tem como tema Cinema e Tecnologia, em um dossiê que traz reflexões que discutem por perspectivas distintas o estado da arte do cinema no âmbito de uma reflexão mais ampla, que foge de um olhar puramente técnico, explorando o cinema como uma tecnologia do imaginário contemporânea, e assim, pensando nos alcances e nos limites, nas transformações e nas permanências dessa forma de representação.
Ao tratar do peso da representação, John Tagg adverte: “A câmera nunca é um mero instrumento, porque suas limitações técnicas e as distorções resultantes se registram em forma de significado”. De fato, não podemos tirar a razão dele. Da mesma forma, temos de admitir, seguindo Jacques Aumont em seu texto inédito para este dossiê que apresentamos agora, que “um filme depende de sua técnica”. Sim, concordamos. Porém, ainda resta uma dúvida: e a técnica, por sua vez, depende do quê? Ou surge do nada? Quando Luis Buñuel, por exemplo, nos mostra, em Un chienAndalou (1928), o corte num olho pela navalha, pode nos falar tanto de uma falência da visão (ou seja, é um sentido figurado), quanto de um simples gesto representado por esse gesto (repito propositadamente) mesmo, o corte da navalha. Um corte da navalha, e ponto. Fala-nos, assim como em qualquer filme, o que está na ponta da nossa percepção, e não de alguma imagem homogênea a todos que a veem. Isso porque a técnica nos limita.
O pensamento é maquínico, mas a criação é humana. Ainda conta o que há de humano em nós. Conta cada vez menos, é verdade. Imaginar um filme, portanto, não é, necessariamente, produzi-lo. Claro que não se interage no vazio, e é para isso que serve a técnica, para que nos comuniquemos através de uma imagem (mental e visual, tanto uma quanto a outra, revigorando a palavra da qual se origina, que é “imago”). Este corpo de artigos retrata, pois, uma perplexidade. A perplexidade maquínica. Muitos são os efeitos especiais, hoje em dia. Vai longe o tempo de um Léon Gaumont, um Charles Pathé e do cinematógrafo dos irmãos Louis e Auguste Lumière. Vai longe o tempo das trucagens meio que circenses de um Georges Méliès. Na primeira sessão dos Lumière, em 28 de dezembro de 1895, no Boulevard des Capucines, em Paris, cobrou-se 1 franco por pessoa. Total arrecadado: 35 francos. Logo, o cinema começou com 35 espectadores. A propaganda tratou de fazer o resto.
A essa altura, como bem lembrou Mario Arturo Alberto Guidi, o teatro ótico de Émile Reynaud já era passado. E o que é passado, presente e futuro do cinema? Dentro de uma perspectiva circular do tempo, poderíamos afirmar: nada. Assim, concordaríamos com Nietzsche e sua tese do eterno retorno do mesmo de que o centro está em toda parte. Logo, aquele tempo que vai longe também é do nosso tempo. Um tempo mítico. É do mito que o cinema se origina. O mito é uma narrativa. Não existe cinema sem uma narrativa. Jean Cocteau dizia que a linguagem cinematográfica é uma “escritura de imagens”. O que nos motivou a lançar este dossiê foi uma interrogação filosófica. Esta interrogação parte do princípio de que a técnica é ambivalente. É uma ambivalência entre o ser-objeto. Morin fala disso em “O cinema ou o homem imaginário”. Ele pergunta: “Uma ciência será apenas uma ciência? Não será ela sempre, na gênese, filha do sonho?”. Parafraseando Morin, poderíamos nos indagar o mesmo: “A técnica será apenas uma técnica? Não será ela, na gênese, filha do sonho?”. Godard afirma, mais ou menos assim, que um filme expressa uma impressão e imprime uma expressão. Aqui, há um jogo entre a impressão subjetiva que também é materialidade. Ou da expressão, na sua subjetividade, que se imprime (fisicamente). Deixemos que Godard fale: “O que me chama atenção quando vejo meus filmes antigos é como dois movimentos distintos, o que se pode chamar de expressão, que consiste em pôr para fora alguma coisa, e depois, ao contrário, a impressão, que consiste em pôr para dentro alguma coisa. Nessa impressão há um grande movimento de impressão”.
A técnica, ainda, nos faz lembrar que ao vermos um filme estamos diante de elipses constantes. Entre a imagem técnica e a nossa subjetividade, a elipse surge como uma espécie de “terceiro incluído”. Godard, novamente, e para terminar, considera que há dois níveis de leitura em um filme, o visível e o invisível: “O que você põe diante da câmera é visível, mas só isso não basta. Os verdadeiros filmes são aqueles nos quais há uma espécie de invisível que só pode ser visto através daquele visível”. Esperamos que este dossiê consiga transmitir as inquietações próprias desta época, na qual o imaginário maquínico “denunciado” por Heidegger talvez prevaleça sobre o Ser. Cinema e tecnologia são modos e versões disso.
Em seus artigos, o dossiê trata sobre esse tema por diferentes olhares. Em A Imagem Velada: o Informe Luminoso, o investigador francês Jacques Aumont discute sobre o uso e as propriedades da luz em diferentes obras cinematográficas, em que “ela tanto vela quanto ilumina” e “dissimula revelando – e sempre, com um abono simbólico manifesto”. Fernanda Capibaribe Leite, no artigo Cinema e Feminismo entre Poética e Devir: por uma tecnologia engendrada, busca contribuir para a construção de uma poética feminista no cinema e audiovisual contemporâneo, concebida na ideia de trânsito ou fluxos para sujeitos de gênero compreendidas/os fora da lógica dos binarismos “cis” e heteronormativos. Em “Are You Talking To Me?”- A expressão do popular midiático como potência política em “Taxi Driver”, de Martin Scorsese, Thiago Pereira Alberto e Bruno Costa analisam o filme “Taxi Driver” (1976), de Martin Scorsese, como um possível veículo de expressão dos meios de comunicação populares como um poder político. O autor Charles Bicalho traz uma resenha sobre o livro Do truque ao efeito especial: o cinema de Segundo de Chomón, de Paulo Roberto Barbosa, que traça a trajetória um dos primeiros mestres nas trucagens de efeitos especiais e visuais, e também pioneiro de colorização para o cinema, que trabalhou para Méliès e para a Pathé, além de fundar a primeira produtora de filmes da Espanha. E encerrando o dossiê, o artigo Estética do Documentário S3D, o enigma da imagem estereoscópica, de Hélio Augusto Godoy de Souza, discute a respeito da imagem estereoscópica em um patamar filosófico, como forma de compreensão do mundo sob um viés realista.
Além dos trabalhos que compõem o dossiê desta edição, destacamos os artigos reunidos nas demais seções da revista: “Abordagens Multiplataformas”, com artigos que exploram temas contemporâneos da comunicação e das mídias audiovisuais, como a pesquisa de Juan Diego Andrangoe Fernando Herraiz García que aborda as produções audiovisuais voltadas para imigrantes equatorianos em Barcelona, que tentam criar laços de unidade e apoio através delas; Gilesa G. S. Castro e Vicente Martin Mastrocola tratam sobre o as relações entre comunicação, consumo e tecnologia, através de dispositivos digitais que se hibridizam ao corpo humano; Cláudio Aleixo Rocha e Rosa Maria Berardo falam a respeito da animação interativa presente no ambiente on-line através de peças publicitárias; os autores Francisco Rolfsen Belda, Felippe Souza De Lima, Danilo Leme Bressan, Gisleine Fátima Durigan e Matheus Monteiro de Lima tratam sobre os modelos de negócios emergentes aplicados à TV digital aberta; e Carolina Dantas de Figueiredo e Allison Ronaldo da Silva Mendes discutem sobre possíveis aplicações para o roteiro para dispositivos de mídia móveis, e suas implicações. Por último, a seção “Espaço Convergente” traz uma análise de Liana Gross Furinie Roberto Tierzmann sobre o documentário Marley (2013), que teve o Facebook como sua principal janela de circulação.
Esta edição está nas nuvens graças ao trabalho generoso e árduo realizado pela Equipe de Editores. O agradecimento é extensivo a todos os autores que participaram deste número e também aos pareceristas e colaboradores pela leitura atenta e minuciosa, ajudando-nos na seleção dos artigos a serem publicados.
A equipe editorial deseja a todos uma boa leitura!
João Carlos Massarolo
Editor Responsável
Eduardo Portanova Barros
Fernanda Aguiar C. Martins
André Piero Gatti
Co-editores Temáticos