A aula da última quarta-feira trouxe comentários sobre o conceito de serialidade em narrativas transmidiáticas; trazendo alguns exemplos a partir da campanha que ocorreu antes da primeira temporada do seriado Game of Thrones (HBO, EUA, 2011-).
É possível abordar a serialidade das narrativas a partir de vários arcabouços teóricos. As histórias contadas em série e a produção seriada de conteúdo foi iniciada bem antes do surgimento do cinema, televisão e outras mídias audiovisuais. A estrutura baseada em capítulos de romances de ficção, por exemplo, se dá ao fato de, terem suas origens em folhetins publicados nos jornais com certa regularidade e relação entre suas “edições”, posteriormente compilados em livros. Em outras línguas, o termo usado para denominar esse tipo de produção é “en sèrie” (em francês) e “serial (inglês). Um exemplo que se enquadra nas características citadas são as histórias do detetive Sherlock Holmes, criadas pelo escocês Arthur Conan Doyle entre o fim do século XIX e o início do século XX, inicialmente publicadas com regularidade no periódico “The Strand” e que serviram de fonte de inúmeras adaptações e inspirações para outras produções derivadas em outras mídias nos séculos subseqüentes.
Umberto Eco, em seu artigo “A Inovação do Seriado”, lembra a presença das narrativas seriadas durante diferentes épocas da produção artística:
O caráter episódico dos seriados da televisão norte-americana, ou seja, de capítulos cujos enredos se fecham em si mesmos, vem dando espaço a formações híbridas que misturam a narrativa episódica e o formato serial. Em outras palavras, a produção das séries vêm adotando formatos em que há a necessidade de um acompanhamento mais cuidadoso e regular por parte do espectador: perder um episódio de um seriado faz com que a compreensão do todo desenvolvido seja prejudicada. Tal mudança se deve, dentre outros fatores, a complexificação das narrativas seriadas.
Pensar como o número de personagens e de núcleos dentro de uma trama televisiva têm aumentado basta para compreender o processo de complexificação dado na televisão nas últimas duas décadas. O modelo em que um núcleo central de três ou quatro personagens estereotipados que trazem suas características intrínsecas toda semana (repetição) e que interagem com outros personagens e tramas (inovação) que ficam presas aos 20 ou 40 minutos de episódio e não aparecem mais na diegese durante os outros programas está dando espaço para tramas mais complexas. A fórmula repetição-inovação enlatada em si mesma e focada em poucos elementos está tendo como contraponto mais produções em que é difícil definir um personagem principal ou um grupo de personagens principais, visto que as interações entre as subtramas dificultam a definição de um “centro”.
Basta observar o pôster de divulgação da última temporada do seriado LOST (ABC, EUA, 2004-2010) para ter um bom exemplo do que está escrito acima. A imagem conta com mais de duas dezenas de personagens, e definir “graus de importância” de cada um deles através de comparação é uma tarefa difícil, visto que cada um deles interagiu em sub-plots interligados e ajudaram a formar uma teia de significados e acontecimentos que conecta seus nodos de forma complexa (até mesmo pelo fato de talvez, o personagem central não ser um ser humano, e sim uma ilha com características ontológicas transcendentais ou inexplicáveis a partir do ponto de vista da ciência do mundo dado como real dentro da rede de histórias que é Lost).
Montar um seriado que conte só com características de serialidade sem princípios episódicos seria impossível. O que temos visto são formas hibridizadas. Um bom exemplo é o seriado Fringe (FOX, EUA, 2008-2013). Enquanto sua parte episódica pode ser restrita a um grupo de funcionários de uma divisão secreta do FBI, que se repetem toda semana resolvendo casos com o auxílio do cientista Walter Bishop; também é possível perceber alguns elementos mostrados em cada capítulo que ajudam a criar uma mitologia complexa (ou confusa); que evolui em tramas que se passam em realidades paralelas (mundos paralelos) que interagem entre si de formas complexas. Os fãs do seriado definem essa estrutura híbrida separando os capítulos em duas classes: “monstro do dia” – em que o time combate algum crime feito com o uso de tecnologia avançada ou matam alguma criatura estranha e há a aparência de que o caso está encerrado; e “episódio mitológico” – aqueles em que a maior parte do tempo diegético é voltado para a colaboração da construção histórica dos mundos e que exigem a necessidade de uma compreensão maior (do todo). O que se passa por muitas vezes desapercebido é que os capítulos “episódicos” trazem pequenas partes de mitologia por muitas vezes – personagens que aparentemente não têm muita importância podem reaparecer com maior influência na trama. Esse balanceamento entre mitologia e repetição, tanto dentro dos episódios, quanto na relação entre eles e uma história maior forma um modelo híbrido da narrativa.
A autora Susana Tosca define a formação da história e da geografia do(s) mundo(s) de uma trama como a construção do “topos”, um dos elementos essenciais, e que forma a tríade junto com o “mythos”- os conflitos do enredo, e o ethos – as regras de moralidade do mundo. Em um caso em que os mundos paralelos são facilmente confundíveis a definição do “topos” pode ser definida através da arte visual e da abertura do seriado. Em Fringe, a cor e a tipografia apresentados na abertura mudam de acordo com o mundo predominante e orienta a compreensão do espectador:
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=zMtid9Oy2Yg]O mesmo acontece de outra forma na abertura de Game of Thrones. Conforme os acontecimentos vão se desenrolando no mundo de Westeros, a abertura vai sendo modificada e a construção dos espaços é modificada com a mudança visual do mapa:
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=UEB7eskQRqk](Vídeo feito por fã que junta as cartografias dos castelos mostrados durante as duas primeiras temporadas).
Além da serialidade, vimos na aula o conceito do uso de artifícios transmidiáticos na série. No caso de Game of Thrones, houve uma campanha de divulgação antes do início da primeira temporada, para agregar diferentes tipos de fãs. É possível identificar Game of Thrones como uma produção pós-massiva, ou seja, desenvolvida para nichos de mercado específicos. A campanha de divulgação anterior à primeira temporada foi desenvolvida pela empresa Campfire, de Mike Monello, que já desenvolveu projetos de iniciativas de extensões transmidiáticas para “Bruxa de Blair”, o seriado “True Blood” (HBO). Como parte das ações, foi lançado um jogo disponibilizado para ser jogado online, em que os usuários são convidados à realizar tarefas que envolvam os cinco sentidos humanos, tendo como recompensas gravações de vídeo do seriado que ainda estava por vir.
O primeiro desafio consistia no sentido do olfato: caixas aromáticas foram enviadas a personalidades e blogueiros com capital social online alto e alto poder de divulgação de informações. Essas caixas continham um mapa de Westeros (centro dos acontecimentos do mundo diegético da narrativa do seriado), frascos de vidro com aromas diferentes e pergaminhos com instruções de combinação. Como recompensa, um vídeo do personagem Jon dando à personagem Arya sua espada era disponbilizado.
O segundo desafio consistia no sentido da audição. Dentro do jogo online, o usuário tinha que decifrar burburinhos. Mais um clipe era destravado como recompensa. A terceira parte focava na visão: o usuário do game tinha que visualizar dentro do universo do jogo a presença de invasores e dar alarme quando eles chegarem por perto. Mais um clipe era dado como recompensa, assim como na última fase envolvendo os sentidos: desta vez o tato: através de um aplicativo disponibilizado para dispositivos móveis, como o iPhone, é possível cruzar os dados de servidores de divulgação de dados meteorológicos com as informações de referência de localização pelo GPS do aparelho e comparar o clima da cidade de cada pessoa com o de partes do universo da trama de Game of Thrones.
(acima, imagens do aplicativo Ice and Fire)
Outra parte da ação envolvia a degustação (paladar) de comidas típicas do mundo construído de Game of Thrones, realizadas em Nova York e Londres. Finalmente, a última proposta era fazer com que cinco amigos se registrassem no jogo, divulgando links através de um aplicativo desenvolvido para redes sociais como o Facebook. A última recompensa era diferente: um vídeo do agradecimento de George Martin, o autor dos livros que originaram as adaptações para a televisão.
Considerações: as pesquisadoras Susana Tosca e Lisbeth Klastrup fizeram pesquisas com os usuários do jogo e chegaram à conclusão de que a maioria deles já era fã da série de livros, e estavam interessados em antever o formato da adaptação na televisão. A campanha não obteve muito sucesso em número, já que a forçava os fãs mais ávidos (hardcore) a influenciar fãs casuais (que assistiriam talvez somente a série) a gostarem e jogarem o game online, algo que não aconteceu com grandes números de usuários. Desta forma, pode-se dizer que foi uma campanha de Marketing Transmídia, já que se utiliza de diversas ferramentas e plataformas midiáticas para divulgar elementos que não seriam adicionais e expansivos à narrativa dos episódios televisivos, mas sim somente prévia deles, de modo a tentar:
1 – conectar a série com os livros, apresentando os personagens principais dos livros nos vídeos de recompensa dos puzzles
2- Tentativa de ganhar o interesse de não leitores dos livros para assistirem a série, apresentando alguns elementos de entrada para esse universo
O que pode ser considerado Narrativa Transmídia na primeira temporada da série foram curtas animados que mostravam a construção da mitologia da série (espaços, grupos de personagens, batalhas). Esses “pequenos episódios”, entretanto, só foram divulgados para usuários que comprassem a caixa de Blu-Ray do seriado; um pequeno nicho que foi ampliado com a divulgação por outros fãs dos curtas em sites de repositórios de vídeo como o Youtube:
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=UUvLmd7vU0Q]BIBLIOGRAFIA:
ECO, U. “A inovação no seriado”. In: Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
JOHNSON, Steven. Tudo o que é ruim é bom para você: como os games e a TV nos deixam mais inteligentes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.
MITTELL, Jason. Narrative Complexity in Contemporary American Television. In: Velvet Light Trap, Texas, n. 58, p. 29-40, 2006.
NDALIANIS, Angela. Neo-Baroque aesthetics and contemporary entertainment. Cambridge, Mass e London, Estados Unidos: The MIT Press, 2004.
SMITH, Aaron. Transmedia Storytelling In Television 2.0: Strategies for Developing Television Narratives Across Media Plataforms.