A aula realizada na última quarta-feira teve a apresentação do Prof. Glauco Madeira de Toledo, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som. Glauco veio trazer vários temas e discussões a respeito de sua pesquisa, intitulada “Aspectos Canônicos da Narrativa Transmidiática em LOST”.
Segundo Glauco, o surgimento do seriado Lost ocorreu em um contexto histórico que fez com que diferentes fatores possibilitaram o sucesso do seriado de televisão, bem como de suas extensões em outras mídias e o incentivo à participação dos consumidores como criadores e desvendadores de uma narrativa complexa. As transformações tecnológicas dos modelos comunicacionais que fazem parte desse momento histórico são, dentre outras:
– As possibilidades de interação da televisão digital (ainda não exploradas suficientemente no Brasil)
– A ascenção da Web 2.0, que através de seus sistemas e serviços agregadores de conteúdo, como Youtube, comunidades, Flickr, etc; permitiu que o conteúdo das redes fosse abastecido pelos usuário.
– A popularização dos blogs, que ao contrário dos diários virtuais, escritos para si mesmo, permitem interações e comentários sobre as postagens sobre os mais distintos assuntos, inclusive análises e teorias de fãs sobre narrativas complexas como Lost.
– A “inteligência coletiva“, conceito cunhado pelo filósofo “Pierre Lévy”, que ressalta as possibilidades da resolução de problemas e construção de conteúdo de forma colaborativa através de informações e colaborações oriundas de fragmentos de esforço cognitivo e da capacidade de usuários que se conectam em comunidades, fóruns e outros ambientes compartilhados nas redes de comunicação como a internet. No caso de Lost, isso é demonstrado nos fóruns e comunidades, que buscavam juntar os quebra-cabeças das dos artefatos diegéticos espalhados nas mais diversas mídias e também na análise por muitas vezes necessária quadro-a-quadro de cenas que continham detalhes que poderiam mudar o entendimento da trama. Por se tratar, além de tudo, de uma narrativa não linear e em que há entrecruzamentos complexos de personagens de dentro e de fora da ilha, os fóruns e comunidades permitiam com que fabulações e hipóteses a respeito do entendimento de Lost fossem feitos. Os diferentes potenciais cognitivos de grupos de fãs heterogêneos, por exemplo: de formulação de infográficos e cartografias da ilha, de elaboração de teorias, edição de vídeo, e a interpretação através de conceitos mitológicos, filosóficos e religiosos, por exemplo, formam um compêndio crescente e rizomático e um conhecimento compartilhado que é maior do que o proposto pela narrativa da televisão. Segundo Lévy (1998):
É uma inteligência repartida em todas as partes, valorizada constantemente, coordenada em tempo real, que conduze a uma mobilização efetiva das competências. Agregamos a essa definição essa ideia indispensável: o fundamento e o objetivo da inteligência coletiva é o reconhecimento e o enriquecimento mútuo das pessoas, e não o culto de comunidades fetichizadas e hipostasiadas.Uma inteligência repartida em todas as partes: esse é o nosso axioma de partida. Ninguém sabe do todo, todo mundo sabe de algo, todo o conhecimento está na humanidade. Não existe nenhum reservatório de conhecimento transcendente e o conhecimento não é outro senão o da gente.
– Convergência Midiática: em um projeto transmidiático as plataformas midiáticas divergem em suas propriedades e modos de consumo, mas podem servir, cada uma com suas melhores potencialidades, como opções de fluxo de uma narrativa que pode ser consumida em vários níveis de leitura, assim como existem vários níveis de espectadores. Aquele que viu a série somente pela televisão vai fabular e compreender a obra de um modo. O número de plataformas em que há o consumo de produtos oficiais (no caso de Lost, livros, sites, episódios para celulares, etc) altera a experiência e a construção do sentido. O mesmo vale para o consumo em meios não-oficiais, como os fóruns e comunidades, que expandem a compreensão de forma coletiva.
– Complexificação das Narrativas: Segundo Steven Johson (2012), as narrativas da cultura pop, em suas mais distintas formas de distribuição e plataformas estão sofrendo um processo de complexificação. Dentre elas estão os games, a televisão, a internet (e claro, obras transmídia que utilizem todas essas mídias). Para compreender um produto como Lost é preciso um maior “empenho cognitivo” (JOHNSON, 2012, p.9), em que vários sub-plots são interligados de modo a promover suspense; e que ganchos narrativos e detalhes são inseridos de forma a “confundir os fãs”. Ainda segundo Johnson (2012, p. 64), “parte do prazer nessas narrativas modernas da televisão decorre do esforço cognitivo ao qual o espectador é obrigado a ter para preencher a lacuna nas séries”. As dicas dadas no seriado confundem e trazem mais mistérios, as setas narrativas (elementos explícitos que explicam a resolução de um plot) são “tortas” e podem ser solucionadas de forma coletiva, mas também conflitante em grupos na internet. Segundo Lang (2012) a complexidade em Lost se encaixa em um conceito de Angela Ndalianis, o “neo-barroco” nas novas narrativas:
“Lost usa a maioria dos elementos Neo-Barrocos definidos por Ndalianis: a parcialmente, persistente violação do quadro que contém a ilusão artística; a ênfase na intertextualidade, complexidade e virtuosidade e o “engajamento ativo dos membros da audiência”, que são convidados a participar em um jogo reflexivo que envolve o estrategema do jogo.” (LANG, 288 in MOORE, 2012) (Tradução livre do autor)
– Narrativa Transmídia. Segundo Jenkins, Narrativa Transmídia representa um processo no qual os elementos integrantes de uma ficção são dispersos sistematicamente através múltiplos canais de distribuição com a finalidade de criar uma experiência de entretenimento unificada e coordenada. O ideal é que cada meio faça a sua própria e distinta contribuição para o desenrolar da história (JENKINS, 2003a, p.1).
CANONICIDADE
Devido ao grande número de elementos formadores dos fluxos narrativos transmidiáticos que abrangem a construção do universo de Lost, como os livros, jogos de realidade alternada (ARGs), games, sites, artefatos diegéticos publicitários, episódios para celulares, etc. e do fato de que em muitas vezes a mesma pessoa controle os diferentes departamentos de produção do mundo diegético (o mundo que é dado como real na história), existe a possibilidade de que vários desses produtos produzam informações conflitantes e não-coesas; ou seja, podem deixar o mundo da ilha de Lost com falhas de continuidade. Para “resolver” essas tensões, um artifício é definir o que é “cânone” ou não na narrativa, ou seja, quais elementos de quais mídias fazem parte oficialmente do universo Lost. Tal noção se aproxima da ideia de canonicidade na religião: as igrejas ocidentais como o Judaísmo, Cristianismo e Islamismo adotam uma série de livros como sendo aqueles que devem ser usados e interpretados como detentores das verdades e dos dogmas. No caso do Cristianismo, a vertente Católica Apóstolica Romana adota uma Bíblia formada por 73 livros. A noção de “verdade verdadeira” de cada livro e a permissão de que ele faça parte do “cânone” dos dogmas do Catolicismo, tem de passar por uma legitimação por uma estância superior, no caso o alto-escalão da Igreja. Segundo os interesses da Igreja, alguns livros podem ser “canonizados” e “descanonizados”. Tudo o que não é canônico, é apócrifo: vários livros e evangelhos foram escritos mas não são aceitos oficialmente pela Igreja, como por exemplo, o Primeiro Livro de Enoque.
No caso de Lost, as estâncias de legitimação do que fazia ou deixava de fazer parte da narrativa estavam também definidas e centralizadas na figura dos produtores executivos, que na transmissão dos podcasts oficiais declaravam o que era canônico ou não. Deste modo, algumas linhas narrativas foram “descanonizadas” por vários motivos, sejam eles comerciais, estratégias de marketing ou tentativas de corrigir incoerências narrativas. O livro Bad Twin, um artefato diegético publicado oficialmente e que podia ser comprado nas livrarias, contava supostamente a história de um passageiro que morreu na queda do voo 815, avião onde estava a maioria dos personagens de Lost. O artefato foi inserido na mídia central (televisão) em uma cena que o personagem Hurley lê o manuscrito na praia. Desta forma, o consumidor que consumiu as duas mídias podiam fazer relações textuais entre os dois tipos de plataforma e seus conteúdos. Entretanto, o livro foi descanonizado pelos produtores, apesar de não mostrar incoerências com a trama.
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=3aN4NoTc8EA] (Hurley lendo Bad Twin)Em narrativas muito antigas, espalhadas e criadas por diversos produtores, a canonicidade é difícil de ser compilada, já que as estâncias legitimadoras não estão impostas nas figuras dos autores ou produtores. Nesse caso, as discussões entre fãs tentam resolver e legitimar certas linhas de eventos ficcionais. Como não há uma figura central, pode haver a formação de grupos que defendem certos discursos dentro das comunidades, trazendo referências externas e pesquisando os dados históricos das tramas. Entretanto, a tendência nesse caso é que as multiplicidades de interpretação e de aceitação de determinadas mídias e histórias se fechem em um círculo vicioso conflitante. Glauco afirma que em histórias semi-controladas, como o universo de Star Wars, que é centralizado na figura do diretor George Lucas, mas distribuído em diversas mídias produzidas através de licenciamentos, a canonicidade é imposta por um misto de fã-produtor.
Glauco considera algumas sugestões para evitar problemas de canonicidade na narrativa: 1- Declarar a narrativa transmídia desde o início, para que os fãs conheçam a natureza do material que consumirão. No caso de Lost, isso não seria possível, já que inicialmente a série foi concebida como um produto único para a televisão. 2 -) Evitar a geração de material que possa ser descanonizado; 3- Ser claro nos sinais: em Lost, muita gente não sabia que era uma obra transmidiática. Um evento que ocorre em um mobisódio (episódio de 2 minutos desenvolvido para telefones celulares) altera toda a compreensão da totalidade da narrativa e de um de seus elementos centrais. Isso é chamado “compreensão adicional”. 4) Dosar a frustração. 5) “Cada extensão transmidiática deve tentar ser uma experiência individual satisfatória, além de oferecer esclarecimentos sobre a narrativa”. 6) Jogar pelas regras. No caso das regras, segundo Glauco, o jogo é esconder (mistérios, ganchos narrativos, etc).
Para os fãs de Lost: Mobisódio que representa o que acontece antes do primeiro episódio (e muda boa parte da compreensão da narrativa, se consumido:
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=iWW9vw_ZmmI](So It Begins, divulgado em 2006)
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=s96iG2lwam4](Início da série, 2004)
BIBLIOGRAFIA:
JENKINS, Henry. Cultura da convergência. 2a Ed. São Paulo: Aleph, 2009.
JOHNSON, Steven. Tudo o que é ruim é bom para você: como os games e a TV nos deixam mais inteligentes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.
LÉVY , Pierre. Inteligência Coletiva. Ed. Loyola ,São Paulo, 1998.
MOORE, Pearson(org.). Lost Thought: Leading Thinkers Discuss Lost. Lexington, Estados Unidos: Inukshuk Press, 2012.
NDALIANIS, Angela. Neo-Baroque aesthetics and contemporary entertainment. Cambridge, Mass e London, Estados Unidos: The MIT Press, 2004.
SMITH, Aaron. Transmedia Storytelling In Television 2.0: Strategies for Developing Television Narratives Across Media Plataforms.
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