No cinema contemporâneo, a troca furtiva de olhares com o desconhecido e um pouso rápido sobre os seres e as coisas está em primeiro plano quando se trata de interrogar o sentido da existência. Por ser um dos principais objetos da escritura cinematográfica, essa interrogação fundamental poderia resvalar facilmente para o melodrama ou cair na vala comum do esquecimento na perspectiva do pragmatismo acadêmico. Mas o homem que escreve o roteiro da sua própria morte não é um ser comum. Esse homem é um ser extemporâneo, possuído pelas forças da vida que transformam o cinema num movimento repleto de emoção. Por quais motivos esse homem escreveria o roteiro do filme de sua própria morte se não fosse para nos deixar, através desse plano-seqüência, o retrato inacabado das suas emoções em movimento?
Foi por esse motivo e, talvez, por se sentir como um pária entre os seus, que o professor Eduardo Leone decidiu produzir seu filme-testamento. “The Unfinished Portrait” (Brasil, 19 min), foi realizado no MidiaLab – Projeto FAPESP/USP, durante o segundo semestre de 1999. Na abertura do filme, Eduardo Leone nos apresenta o cineasta Samuel Ray e nos informa que esse homem atravessa uma grave crise existencial. Atraído pela idéia do suicídio, Samuel Ray pretende acertar as contas com o passado e ir viver no exílio. Nesta crônica, o professor Eduardo Leone vasculha em profundidade a tela do imaginário, fazendo uso da memória e da imaginação para tensionar a palavra e produzir imagens literárias. O que mais surpreende no trabalho do professor Eduardo Leone é o seu extraordinário poder de extrair emoção do movimento, procurando inculcar em todos a visão de que a unidade dramática de uma obra é construída pela montagem, explicando que esse princípio deve estar presente na elaboração da peça fílmica: o roteiro. Essas relações revelam tanto o estilo de narrar quanto as formas de construção do discurso audiovisual.
Eduardo Leone pensava a construção do discurso audiovisual como um dramaturgo. A sua dramaturgia se fundamentou na busca, através das relações que a montagem cria, do pathos cinematográfico e do tipo de articulação que se faz necessária para atingir os espectadores. Para ele, o mundo real só tem existência quando passa a existir como o “real da tela”, numa perspectiva conseqüente. Essa visão do processo cinematográfico foi formada a partir do referencial teórico dos pensadores russos, principalmente de Sergei Eisenstein e pelas matrizes dramáticas do cinema industrial norte-americano. A noção de montagem dramática é o principal legado da sua produção intelectual e artística. A força motriz desse pensamento foi desenvolvida ao longo de sua trajetória como educador e realizador, incorporando em suas pesquisas com o entusiasmo que lhe era peculiar – as novidades da tecnologia do cinema digital.
Em “The Unfinished Portrait”, o narrador do filme articula a voz em off, mesclando cenas em flashback com outras atuais e fazendo uso do Chroma-Key para desenhar a arquitetura de um espaço/tempo, na qual os episódios da vida do cineasta são relacionados através da montagem. Para Eduardo Leone, “o termo narrador deve ser entendido como aquele que instaura uma narração e a desenvolve, moldando situações, ações e personagens, podendo interferir e paralisar o tempo narrativo da história que está sendo desenvolvida”. [1] Partindo dessa premissa, o narrador faz uso da tecnologia digital para articular os diferentes materiais e dar à narrativa um caráter documental. O portal criado pela montagem permite ao espectador visualizar Samuel Ray sentado num bar do aeroporto internacional de São Paulo. O cineasta coloca de um lado o cartão da sala VIP e, de outro, a estrela (de xerife). Diante de si, o Johnnie Walker Black Label e entre baforadas do indefectível Benson & Headges Menthol, engata a marcha-ré da chegada do trem na estação em busca do grau zero da emoção. Os filmes inacabados desfilam na tela em branco do saguão do aeroporto e neste momento derradeiro de sua vida, Samuel Ray pensa no cinema como motion, um movimento repleto de emotion. Na verdade, ele sempre viveu a emoção do movimento, seguindo as pegadas dos cineastas outsiders que lhe emprestam o nome: Nicholas Ray e Samuel Fuller, mestres na arte de criar emoções através da imagem em movimento.
Nicholas Ray e Samuel Fuller foram cineastas que fizeram do cinema um campo de batalha e, talvez por isso, viveram como exilados no sistema produtivo de Hollywood. Foram esses cineastas outsiders, exploradores do grau zero da emoção cinematográfica, que fizeram as honras de “O Amigo Americano” (The American Friend, 1977), no exílio de Wim Wenders nos EUA. Por isso, o cineasta alemão não quis que a morte levasse “O Amigo Americano”, com quem aprendeu a criar emoção em movimento. Movido pelo sentimento de urgência, Wim Wenders registra os últimos meses de vida de Nicholas Ray em “A Morte de Nick” (Nick’s Movie, 1980). Este filme narra de forma simples e sensível, o jogo de permuta que as imagens em movimento operam entre a ficção e a realidade, tornando-se impossível distinguir se aquilo que está sendo narrado é verdadeiro ou não.
A admiração de Eduardo Leone por estes cineastas nasce da sua condição de exilado e, também, devido às suas inquietações quanto ao futuro do cinema. Essas referências inspiram o cineasta Samuel Ray a retomar em “The Unfinished Portrait” a jornada que o conduz para uma estrela solitária, motivo pelo qual decide fazer o balanço final de sua vida. Neste filme, Eduardo Leone explora os principais temas da vida do cineasta – suicídio, exílio, cinema e a montagem das paixões que nunca teve. Esses temas estavam presentes em “A Morte da Strip-Tease”, um filme dos anos 60 que marca sua estréia na realização cinematográfica. Eduardo Leone utiliza a voz em off como uma técnica narrativa capaz de entrelaçar a memória dos acontecimentos às formas de esquecimento. Essa estratégia narrativa permite ao narrador do filme definir a intensidade e a textura das imagens vindas do passado ou do presente sufocante, fazendo com que essas imagens se materializem no “real da tela” como a memória dos acontecimentos. Esse link estabelece os contornos do retrato inacabado que emerge das correlações de forças que atravessam a personagem de imagem e som , empurrando o cineasta na direção do exílio e da morte numa terra distante.
Num mundo dominado pelos jogos de aparência, o suicídio representa a impossibilidade da comunicação. É o narrador que escolhe, seleciona e avalia as conexões possíveis entre a idéia do suicído e o roteiro que o cineasta escreve sentado numa mesa do aeroporto. Samuel Ray havia sentado lá muitas outras vezes, só que entre pessoas. Desta vez, está sozinho entre espaços vazios. Nessa seqüência, a voz em off é que adiciona realidade às imagens do passado, acelerando a passagem do tempo e impulsionando a narrativa para o seu desfecho. A voz em off é a expressão de um conflito entre o mundo das aparências e os temas abordados pelo filme. Ao fundir o narrador à personagem e ao texto que está sendo escrito, o diretor estabelece as condições dialógicas para o surgimento de uma voz subterrânea que diz algo em silêncio, ao mesmo tempo em que se nega a fazer um percurso centrado nas referências biográficas. Ao contrário, essa voz intimista articula e entrelaça em seu percurso as memórias e recordações de uma personagem à deriva, fornecendo novos significados para a trajetória de uma vida que decidiu montar depois dos trinta anos.
A crônica dessa vida faz convergir as linhas de forças para uma cena de duelo no saguão do aeroporto. Samuel Ray tira dos bolsos do paletó um isqueiro que é um pequeno revólver, acende um cigarro e aponta o revólver/isqueiro para sua imagem refletida no espelho. Um frêmito distante percorre seu corpo no momento em que a imagem refletida no espelho é sobreposta por aquela de um personagem preste a duelar em “Blood in Mississippi”, realizado por Eduardo Leone nos anos 70. Essa cena é complementada pelas diferentes faces da morte em “As Três Mortes de Solano” (Brasil, 1975), de Roberto Santos. A colagem de planos provoca a sutura do movimento de uma vida.
Na travessia de volta para o presente, ouve-se sons e barulhos que geram a curiosa sensação de vozes vindas do além. Os fantasmas vivem novamente. Mãos pegam um copo, colocam um pouco de Johnny Black, buscam o gelo mas a caçamba está vazia. Foi sempre assim na vida: com Johnny e sem o gelo ou sem Johnny e com muito gelo. Samuel Ray larga o copo, olha-se no espelho e se vê pronunciando um nome inaudível, enquanto os lugares vazios ao seu redor são habitados por fantasmas vindos do nada. O trabalho de montagem fornece os sentidos para a existência dessas personagens de imagem e som. Na perspectiva do narrador, as personagens e as ações do passado se reduzem a fragmentos de uma história inacabada e condenados a desaparecerem no “real da tela”. Os fantasmas que circulam pelas telas do mundo criam o portal e as condições para o cineasta viver no exílio.
Nesse sentido, Samuel Ray funciona como uma espécie de alter-ego do diretor. A sua existência pertence tão somente ao “real da tela”, mas é a urgência ditada pela proximidade da morte que determina, em grande parte, o processo pelo qual o narrador vê o mundo através dos olhos de Samuel Ray. Esse olhar é potencializado pela idéia da morte. Contra as verdades submersas no tempo e trazidas à luz pelas lembranças e recordações das personagens de imagem e som, Samuel Ray retoma a escritura de um roteiro que nunca havia sido concluído. Na montagem desse plano-seqüência, o portal da morte permanece em aberto, como na bela seqüência em que as portas de uma capela mortuária se fecham atrás do gângster (Robert de Niro), simbolizando a sua morte, em “Era Uma Vez na América” (Once Upon a Time in America,1984), de Sergio Leone.
Esse foi um dos filmes que a pequena equipe de colaboradores teve o privilégio de assistir na companhia do professor Eduardo Leone depois de um extenuante dia de trabalho. Abastecidos de Cutty Sark e muitas caçambas de gelo, passeávamos do planejamento estratégico das filmagens para a leitura de obras importadas do EUA no sistema Laser Disc (os fumantes eram convidados a permanecer na varanda da cobertura). Nessas incursões pela cinematografia norte-americana, os comentários do professor Leone sobre o processo de construção do discurso audiovisual, iluminavam as faces cansadas dos membros da equipe de filmagem e faziam brotar sorrisos espontâneos de aprovação. Ficávamos assim, durante horas, desenhando retratos inacabados e pensando no trabalho do dia seguinte. Nestas jornadas noite adentro, a seleta platéia de ouvintes/espectadores conviveu na prática com um dos principais teóricos do cinema. Essas conversas periféricas diziam mais sobre o filme em construção do que éramos capazes de supor naquele momento.
No dia seguinte, Samuel Ray prepara-se para o duelo final no saguão do aeroporto, na companhia do laptop. Na tela refletida no espelho do bar, estão as imagens do passado (aeroporto de Congonhas em “Blood in Mississippi”), que irão dar origem a uma seqüência de montagem de filmes, cartões e pequenos objetos antigos. Esses signos afetivos são marcas ocultas que revelam segredos e desejos indecifráveis. Quando o baú de lembranças fecha-se rapidamente com um grande estrondo, os fantasmas do passado desaparecem e a narrativa volta para o presente. No contracampo, entra em quadro o cineasta diante de uma garrafa Johnnie Walker Black Label. A reiteração desse diálogo provoca o dilaceramento da imagem refletida no espelho, abrindo espaço para que o narrador faça uma revisão crítica da história do cinema. No ritmo alucinante de uma edição de videoclipe, seqüências de filmes sucedem-se na tela, enquanto o narrador tece comentários sobre a complexa construção do discurso audiovisual. Para Samuel Ray, o montador é um mágico que tira da cartola mentiras que se transformarão em lenços coloridos com aparência de verdades ao criar conflitos através da direção de olhares ou manipulando vozes, cores, sons…
O ensaio de uma revisão crítica do cinema é interrompido pela chamada dos passageiros para o portão de embarque. Samuel Ray retira do bolso o isqueiro com forma de revólver e o maço de cigarros, depositando-os sobre a mesa. Esse é o sinal de que o cineasta vasculha a tela da mente atrás de um sentido que fizesse escorrer sangue na superfície da tela. Ouve-se uma nova chamada para embarque. Ele acende um cigarro com o revólver/isqueiro e por entre baforadas, escolhe as armas do duelo. O local escolhido para a disputa é o espaço amplo e desértico do aeroporto. A paisagem desse lugar representa o espaço mítico de um saloon do velho oeste, um lugar freqüentado por aventureiros que exploram territórios desconhecidos em busca da terra da liberdade. É nesse espaço que se desenvolve o enredo de um homem trágico, mergulhado num campo de forças que tensiona o presente e não permite a redenção do seu passado. A montagem desse retrato inacabado reitera a emoção do movimento, deixando em aberto as perspectivas futuras. “Você se mata e fica sentado esperando a morte”. A frase repetida mentalmente por Samuel Ray transcende a memória dos fatos e instaura o conflito final.
No fim das contas, a estratégia de Samuel Ray para enfrentar o devir das forças em jogo consiste em não reagir aos acontecimentos mundanos, refugiando-se na indiferença demonstrada pela personagem de Robert de Niro em “Era Uma Vez na América”. Eduardo Leone adota esse modelo de ação e abandona as técnicas tradicionais de diálogo, fazendo da reação (contracampo), o espaço da construção dramática realizado pelo trabalho da montagem. No roteiro que o cineasta escreve sobre o filme da sua morte, a não-reação é uma forma de interação entre a memória dos acontecimentos e as formas de esquecimento. A não-reação é uma forma de ação suicida, que propicia aos fantasmas do passado a oportunidade de se efetivarem no presente como uma potência avassaladora. Os conflitos no “real da tela” são criados nas margens desse diálogo possível e que não se efetiva, provocando a colisão das diferentes trajetórias que levam o cineasta ao suicídio.
Samuel Ray leva a mão ao bolso do casaco e saca uma arma. Ouve-se um estampido – a bala atravessa a tela imaginária e o sangue escorre pela tela do laptop . Em “The Unfinished Portrait” a idéia do suicídio é trabalhada no sentido figurado, com propósito de redimir o passado da personagem e fazer o trem do cinema voltar à estação de partida na esperança de alcançar o grau zero da emoção em movimento. Por uma ironia do destino, a personagem exilada no “real da tela” sobrevive aos eventos que protagoniza e recomeça a sua jornada em um não-lugar. Na montagem paralela dessa cena em “Se Meu Apartamento Falasse” (The Apartament, 1960) de Billy Wilder, ouve-se o estampido de uma arma sendo disparada no apartamento de C.C. Baxter (Jack Lemmon). A jovem Fran Kubelik (Shirley MacLaine), corre bastante assustada pelas ruas da cidade e é recebida com uma garrafa de champagne aberta, em comemoração à passagem de ano.
Na montagem do “real da tela”, a ação é retomada num avião. Samuel Ray está sentado sozinho entre poltronas vazias e a caminho do exílio nos EUA, onde irá reencontrar numa mesa de bar com Johnnie Walker Black Label e muito gelo, os amigos americanos: Nicholas Ray e Samuel Fuller. A sua expressão é densa e ele aperta com força a estrela (de xerife). Na tela do laptop que leva consigo, digitaliza as últimas palavras do roteiro que vinha escrevendo antes de embarcar para a estrela solitária. Depois fecha os olhos e na tela do desktop, surgem os créditos finais de “The Unfinished Portrait”. Montado numa carruagem de fogo (ou será um táxi?) que o conduz em segurança até a estrela solitária, Eduardo Leone acena um até breve adeus. No portal da estrela solitária e na companhia de um céu de arco-íris, monta o retrato inacabado tendo no horizonte o grau zero da emoção em movimento.
Ficha Técnica – “The Unfinished Portrait”
Ano de realização: 1999
Samuel Ray: João Carlos Massarolo
Fotografia: Adriano Barbutto
Assistente de fotografia: Maurício Baffi Pelegrinetti
Edição: Eduardo Leone e Eduvaldo M. Oliveira
Produção: Laura L. Canepa
Música: Ney Carrasco
Roteiro e Direção: Eduardo Leone
[1] LEONE, Eduardo, MOURÃO, Maria Dora. Cinema e Montagem. São Paulo: Ática, 1986,18p.